Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Saudades do futebol-arte





Sintetizado no logotipo da Copa do Mundo realizada na África do Sul em um gol de bicicleta, o futebol-arte é tema constante de discussão. Nas mesas de bares e páginas de jornal, a mesma pergunta: o futebol criativo, dos dribles espetaculares e da ginga, acabou? Foi suplantado pela velocidade do ‘futebol científico’? Times como o Barcelona e o Santos, com seus craques Lionel Messi, Neymar e Ganso, comprovam que ainda é possível jogar bonito e buscar o futebol de resultados?


O treinador do time brasileiro evita comparações, mas após o jogo contra a Costa do Marfim, disputado no domingo (20/6), Dunga reclamou que a arbitragem impediu o time de mostrar um jogo bonito. ‘Fica difícil você jogar o futebol-arte, como todo mundo pede, quando o árbitro deixa as coisas passarem’, criticou. Após a vitória de 3×0 contra o Chile, os especialistas elogiaram a atuação do time brasileiro, mas alegaram que ainda falta o ‘encanto’. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (29/6) pela TV Brasil discutiu o papel da imprensa na construção do conceito de futebol-arte e o saudosismo de parte dos jornalistas.


Para debater este tema, Alberto Dines recebeu três jornalistas no estúdio do Rio de Janeiro. Carlos Lemos foi assessor de imprensa da seleção brasileira entre 2000 e 2002. Acompanhou a seleção em 1958, na Suécia, pelo Jornal do Brasil, e esteve nos mundiais de 1962, 1966, 1970, 1986, 1990 e 1998. Teixeira Heizer é comentarista do canal Sportv. Passou pelo Estado de S.Paulo, Veja, Placar e TV Globo. Heizer acompanhou diversas Copas do Mundo, além de dezenas de outras competições internacionais. Sérgio Noronha trabalhou no Jornal do Brasil, no Correio da Manhã, em O Globo e na TV Globo. Cobriu todas as Copas do Mundo entre 1974 e 2006.


Coisa do passado


No editorial que abre o programa, Dines comentou que o futebol-arte hoje é uma ‘peça de museu’. ‘Curiosamente quanto mais se aproxima do conceito de show mundial mais o futebol se distancia dos paradigmas que o converteram no esporte das massas. O culto das táticas rígidas tem um duplo efeito: acaba com a hegemonia dos gigantes, socializa os seus segredos e de certa forma nivela por baixo um espetáculo que deveria representar a busca da suprema excelência’, avaliou [ver íntegra abaixo].


A reportagem produzida pelo Observatório relembrou que Dunga é o símbolo do jogo retrancado desde do Mundial de 1990, realizado na Itália. Cláudio Arreguy, editor de Esporte do jornal Estado de Minas, então editor do Jornal do Brasil no Rio, contou que a seleção chegou para disputar o título movida por bons resultados obtidos em jogos no ano anterior. Mas pouco antes do início da Copa, em um amistoso, mostrou um futebol ‘magro’ e violento. O colunista Oldemário Touguinhó escreveu uma matéria na qual afirmava que o treinador Sebastião Lazaroni alertava a torcida brasileira para não esperar mais um futebol vistoso, de tabelas e triangulações.


O futebol vivia uma nova era, simbolizada por marcações e ocupação do espaço em campo. Seu maior expoente, o volante Dunga. A manchete estava pronta: ‘Lazaroni decreta a era de Dunga no futebol’. A derrota em 1990 marcou a carreira do então jogador. ‘A derrota virou sinônimo de Era Dunga. Dunga virou sinônimo de derrota. Quando nós ganhamos em 1994, ganhamos ‘apesar’ do Dunga. E é mais ou menos o que está sendo falado agora. Se ganharmos, vamos ganhar apesar dele’, disse Otávio Leite, editor adjunto de Esporte do jornal O Dia.


Conflito de gerações


Jovens que cresceram acompanhando pelos canais por assinatura os campeonatos europeus custam a acreditar que o futebol jogado 30, 50, 60 anos atrás era melhor do que o mostrado hoje pelo Barcelona e pela Inter de Milão, por exemplo. ‘Eles acreditam que o futebol-arte é uma lenda, uma ficção criada por parte de uma imprensa antiga e saudosista para defender aquilo que eles viram e ninguém mais sabe como é’, explicou Otávio Leite.


No Brasil, o futebol-arte tem uma importância fundamental. É quase uma religião, na opinião do editor de Esportes do jornal O Globo, Antônio Nascimento. ‘Existem aquelas pessoas, os ‘pastores’ – Fernando Calazans é um deles – que são adeptos desta seita chamada futebol-arte. Já se gastaram páginas e páginas, horas e horas de televisão com esta discussão’ afirmou. Toda a história do futebol brasileiro está entremeada pelo debate sobre o ‘jogo bonito’ ou da discussão passadista que decreta que ‘o de antigamente era muito melhor’.


Lionel Messi, o camisa 10 da seleção argentina, reacende as esperanças da volta do futebol-arte. ‘Todo mundo acha que o futebol-arte vai voltar. Eu acho que ele não vai voltar por completo’, disse Daniel Bortoletto, editor regional do diário esportivo Lance! no Rio de Janeiro. Para o jornalista, o futebol jogado atualmente é bonito mas, naturalmente, carrega as características dos novos tempos.


Mais competição, menos charme


Para Bortoletto, a imprensa ajudou a divulgar o conceito de futebol-arte, mas teve nisso um papel secundário. O desempenho em campo de grandes craques brasileiros das décadas de 1950, 60 e 70 é que tornou o esporte ‘bonito de se ver’. O jornalista explicou que com o passar dos anos, a evolução tática do esporte tirou o espaço do futebol-arte. O esporte ficou mais competitivo, mas com menos charme. E o time montado por Dunga não foge à regra. ‘Esperar futebol arte desta seleção? Não tem a menor chance’, avaliou Antônio Nascimento.


No debate no estúdio, Dines perguntou a Carlos Lemos se a imprensa está tentando impor um modelo que já não é mais eficaz. ‘Futebol é jogo. No jogo, importa ganhar, seja que jogo for. Porrinha, basquete, cartas. O importante é ganhar’, sublinhou Lemos. Para o jornalista, a ‘arte’ não é relevante. ‘Dentro da regra e aplicado, o futebol é a busca da vitória’, disse.


Teixeira Heizer confessou que tem saudades do futebol-arte. ‘Eu prefiro ganhar com aquele futebol praticado por gente que sabia jogar’, comentou. Com uma visão mais pragmática, Sérgio Noronha disparou: ‘Eu quero ganhar honestamente. Se puder ganhar bonito, tudo bem. Se não puder, vou ganhar feio. Competir é brigar para vencer. Quem quiser ver um bom espetáculo, vá ver o Harlem Globetrotters’, disse.


Grosseria fora do campo


Para Teixeira Heizer, o futebol está vivendo ‘uma estranha liturgia da grosseria’. O número de profissionais de imprensa enviados para cobrir o Mundial deveria ser ainda maior porque há fatos que ocorrem à frente de todos e estão sendo escondidos do público. Sob este aspecto, o trabalho dos repórteres é fundamental para trazer ‘as emoções que estão secretas até o momento’ por conta das limitações ao trabalho da imprensa impostas por Dunga. Carlos Lemos reconhece que o papel da imprensa é fiscalizar e exigir mais; no entanto, considera que se a seleção está ganhando, ‘está bem’. ‘A seleção está jogando o que ela pode jogar e a imprensa está querendo que ela jogue melhor’, criticou.


Sérgio Noronha ponderou que o mundo se transformou e a televisão mudou o esporte. Hoje, o futebol é um grande negócio mundial. Nesse aspecto, vencer torna-se ainda mais importante. Fora do jogo, não é possível participar do business. ‘Nesta Copa do Mundo, por exemplo, cada jogo é transmitido por 30 câmeras. E passam os lances no telão do jogo. Então, é muito difícil você exigir uma coisa de sonhos diante desta realidade que é monstruosa. A verdade é esta’, disse.


Heizer concordou que a forma de entender o futebol mudou, mas defendeu que o vencedor ganhe com ‘um pouco de sonho, de qualidade’. Noronha argumentou que é preciso que haja sonhadores como Heizer, mas que não se define como tal. É um ‘prático’. E relembrou o velho chavão: futebol é bola na rede.


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Peça de museu


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 552, exibido em 29/6/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Este Mundial tem algo que nos remete ao terceiro, o de 1938, na França, no qual brilhou nossa primeira estrela, Leônidas da Silva. Agora reparem no logotipo da copa da África do Sul e vejam se aquela cambalhota não é a representação de uma bicicleta. Tem tudo a ver. Leônidas em 1938, Pelé nos anos 1960, são as expressões máximas de nosso futebol e ambos exímios na arte da bicicleta.


Já se passaram pouco mais de sete décadas entre as primeiras bicicletas do Diamante Negro e a sua celebração na logomarca da Copa sul-africana. Mas parece uma eternidade porque o que se convencionou chamar de futebol-arte é hoje uma peça de museu.


Curiosamente quanto mais se aproxima do conceito de show mundial mais o futebol se distancia dos paradigmas que o converteram no esporte das massas. O culto das táticas rígidas tem um duplo efeito: acaba com a hegemonia dos gigantes, socializa os seus segredos e de certa forma nivela por baixo um espetáculo que deveria ser representar a busca da suprema excelência.


A bicicleta evidentemente é um recurso de uso restrito, reservado aos deuses. Não é arma de guerreiros, monumento às artes do futebol-arte.

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Jornalista