Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Ser jornalista, ser humano

Nesses dias de realidades recriadas e redistribuídas ao gosto de consumidores, onde a cidadania é tão valorizada quanto um gráfico do quadro do departamento marketing de governos e empresas, urge destacar o valor do Jornalismo como opção transformadora.

Falar em jornalismo, assim, com J maiúsculo, tem sentido só para quem vive fazendo escolhas diárias entre o comodismo individual e o conflito pelo coletivo. Não tenho dúvidas em dizer, nesse sentido, que esse é um caminho de uma só direção, não há portanto jornalismos, mas Jornalismo. O compromisso com a verdade (em todas as circunstâncias em que está contida nessa palavra vazia um sentido de Justiça) não é, em nenhum setor da vida social uma opção fácil. E os jornalistas, com toda a carga de responsabilidade e poder que sabem deter em cada pauta, entendem o que pode a palavra.

Medo e esperança

Há uma tendência preguiçosa e fantasiosa na imprensa tradicional em querer fazer crer que a responsabilidade do jornalismo se resume à tradução crua e fria do real. O argumento equivocado e enganoso dessa intencionalidade se baseia em um princípio de que basta mostrar, e a sociedade que faça o seu juízo. Em outros termos, se sustenta esse preceito na defesa intransigente da objetividade, como se tal fosse possível em um ofício cuja base de criação e recriação é absolutamente humana, e não tem nada de objeto. A técnica, nesse aspecto, empolga e ilude iniciados nessa profissão, onde não poucos caem na armadilha do fazer por fazer, esvaziando a sua práxis profissional do que tem de mais precioso: o compromisso com o seu tempo. Essa dimensão política do jornalismo, penso, cresce na exata medida em que a sociedade se complexifica e se distancia dos olhares humanos a visão – consciente e crítica – do todo.

Infelizmente, porém, a noção política que enriquece a arte de traduzir a vida pelas palavras é rara nas escolas de Comunicação. Estas se multiplicam e se ajustam aos gostos do mercado, onde o signo do capital só tem compromissos com a preservação da ordem, e o moderno há muito se converteu em cadáveres perfumados de beleza, felicidade e prazer. Mas isso não significa que tudo está desencantado. Há olhares novos que valorizam ainda aquilo que não corresponde a cifras, mas que grita a necessidade de ser dito. Confio intimamente nesse poder envolvente de resistir e insistir na captura diária de um horizonte diferente, mesmo onde tudo parece igual e miseravelmente protegido da mudança. Ao jornalismo cabe dizer o rei está nu, mesmo que tudo o mais queira mostrá-lo de terno e gravata. Mas também sou otimista, porque sou político, logo, porque sou jornalista.

Não creio, assim, que o medo venceu a esperança. Primeiro porque a esperança também tem os seus disfarces; porque a esperança não é um instante, mas uma busca, ou uma etapa de um processo que construímos diariamente e, sobretudo, porque a esperança maior de transformação de uma sociedade deve residir na confiança que depositamos no homem, ser humano, com todas as suas falhas e possibilidades, não em uma personalidade.

Modo de vida

E o que escrever tem a ver com isso? A palavra é uma forma de dizer o que pensamos. Idéias, ações e comportamentos também manifestam posições. Ao dizer, entretanto (oral ou escrito), registramos uma face do real em símbolos universalmente compreendidos, ou pelo menos traduzíveis. Há, desse modo, uma forma de marcar uma experiência de uma época culturalmente. E mais do que uma recuperação do passado, o jornalismo faz isso do cotidiano. É o agora sendo dito para o presente e o futuro, também com base nas impressões colhidas do passado. Eis o sublime do escrever sobre a sua época. Nesse aspecto, insisto, fazer jornalismo é um ofício, mas se expressa de formas diferentes, até mesmo por um olhar. É por essa razão – e não é pouco – que a nossa dignidade como profissionais é valor mais precioso que detemos.

Não creio, dessa forma, que ensinar e escrever estejam tão longe. São dimensões diferentes de um mesmo propósito. Quero dizer, com essa visão, que continuo fazendo jornalismo na medida em que continuo expressando de alguma forma a insatisfação com um cenário social. E isso não se faz só numa redação. Mas lá, é preciso que se ressalte, é um lugar legitimado socialmente e oportunizado comercialmente para fazermos a diferença através das idéias. Cabe acreditar nos meios como alavancas de modificação das estruturas ainda, que as conveniências insistam que não vale a pena, que o meio contamina, que todos são corruptíveis facilmente. Se há um motivo pulsante para viver, ele está naquilo que acreditamos como felicidade, e esta é impossível isolada socialmente, pelo simples fato que assim existimos. Logo, escrever, ensinar e viver são faces de um mesmo fenômeno, de uma mesma opção de existência, ou se quisermos, do fazer jornalismo.

A expressão ‘jornalista’ que aqui utilizo não tem a ver estritamente com um ofício, mas com uma forma de ver e agir sobre o mundo; sim, creio o jornalismo como um modo de vida, um olhar específico sobre o mundo, que também se traduz em uma profissão – sublinho, assim, que não apóio com isso o discurso dos magnatas da imprensa pela pseudoliberdade, na onda da sofista campanha pelo fim da exigência do diploma para o exercício do jornalismo, medida ingênua, se não fosse também maliciosa.

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Jornalista, Sombrio, SC