Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ser repórter é estado de espírito. Ser jornalista é profissão

Há vários dias esse pensamento vem me martelando a cabeça. Outros assuntos – como o dinheiro que acaba no meio do mês e a sem-gracice da campanha eleitoral – vêm à tona todos os dias, mas esse pensamento está sempre à espreita. Muito tem se falado sobre a profissão do jornalista e volta e meia surgem projetos de lei polêmicos que jogam luzes (ou seria o contrário?) sobre o ofício que escolhi. Mas não é esse o meu tema.

Na verdade quero refletir sobre os(des)caminhos dessa profissão que, como muitas, vai do céu ao inferno em poucos segundos. É comum pessoas invejarem jornalistas por sua proximidade com artistas e poderosos de toda sorte, porém as mesmas pessoas são capazes de lhes jogar pedras por desnudarem a vida de famosos e outros nem tanto, as chamadas celebridades instantâneas. Esse é apenas um filão do jornalismo, responsável por picos de vendas de revistas ilustradas ou o ibope de programas sensacionalistas de rádio e TV. Nada contra, afinal, the show must go on… Em outras palavras, é preciso dar carne aos leões, fomentar o circo de futilidades e horrores que desde Roma Antiga fascina homens e mulheres.

O jornalista pode ter múltiplas funções – editor, redator, diagramador –, que vão ganhando novos nomes ou sendo substituídas à medida em que a tecnologia avança. Outro dia, pasmem, li na internet que um site de notícias nos Estados Unidos chegou à conclusão de que um computador faz melhor e mais rápido o trabalho de um jornalista. A notícia (deve ter sido escrita por um computador) não dava muitos detalhes sobre como a coisa funciona. Porém, por mais eficientes que sejam os computadores, por enquanto, ainda são ferramentas, e nada substitui a sensibilidade e o faro de um bom repórter.

O sonho e o emprego

O repórter é antes de tudo um cara curioso, até chato. Detalhista, insistente, pentelho mesmo. Não pode desistir diante de um rosto fechado, uma secretária mais realista que o próprio chefe, um segurança carrancudo, um telefone que insiste em dar sinal de ocupado. Precisa ser persuasivo, obstinado, apaixonado. Pronto! Chegamos ao ponto crucial: impossível ser repórter sem gostar do que faz, sem ter vontade de fuçar aquele assunto mais e mais, de checar uma informação nova, buscar o contraponto, atiçar a polêmica.

Repórter que é repórter não teme passar do horário, não rejeita pauta e disso muito se aproveitaram (e ainda se aproveitam) os chefes de ocasião. Parece até que o chefe de reportagem tem um faro especial para adivinhar o dia daquela consulta que você levou um mês para conseguir marcar…

Parece que isso faz parte de um passado. Dizem que a gente tem mania de só lembrar das coisas boas do passado. É a tal da nostalgia, coisa de gente que já passou dos 40. Pode ser. Mas lamentavelmente não sinto nos alunos de Jornalismo de hoje a paixão pela reportagem. Percebi no convívio de dois anos com universitários que a maioria está mais preocupada em sobreviver e tem como sonho de consumo um bom emprego numa assessoria de imprensa. Como repórter/jornalista conheço bons e maus assessores e eu mesma já fui assessora. Conheço, portanto, os dois lados da moeda.

Mão única

A assessoria de imprensa começou a se disseminar no Brasil na época da ditadura. Era coisa de jornalista velho e/ou acomodado, gente que tinha medo de ir para a rua e cobrir passeata de estudante, de ver o pau comendo ou preferia que tudo continuasse como estava. Meu sonho, na adolescência, era ter coragem para ser correspondente de guerra no exterior. Bobagem de quem ainda não sabia das guerras travadas por aqui mesmo. Os assessores, com louváveis exceções, estavam lá apenas para dificultar o acesso à informação. Eram mais uma barreira no caminho do entrevistado.

Com o tempo, o papel do assessor mudou. Hoje, muitos deles auxiliam o repórter a encontrar as melhores fontes, sugerem pautas interessantes (os mais competentes) e, muitas vezes, nos poupam tempo, o que é muito útil para quem tem várias matérias para fazer. Nada tenho contra o assessor ou esse nicho do mercado de trabalho. O que me incomoda é constatar que a maioria dos jovens profissionais está se consolidando como assessor sem experiência suficiente (às vezes, nenhuma) como repórter. E o pior, ele nem se dá conta disso!

Em geral, o assessor faz uma matéria de mão única. Caso contrário, vai levar um puxão de orelha do seu assessorado. ‘Você está dando tiro no próprio pé’, disse-me uma vez um deles. Ninguém gosta de ser notícia graças a suas facetas menos positivas. O assessor pode até estar cheio de boa vontade, mas com o tempo vai se habituando ao discurso ufanista em que o ‘que poderá ser’ vira manchete como coisa pronta e acabada.

Pedreira prazerosa

Diante disso, onde fica a paixão, o tesão de reportar, contar o que viu, o que sentiu, botar vida na matéria? Que coisa mais fora de moda… Hoje em dia procura-se ir o mínimo possível para a rua, isso toma tempo, gasta dinheiro da empresa. Para que existe telefone, internet? Ctrl+c, ctrl+v é a nova roupagem da velha gilette press. Nada se cria, tudo se copia.

As pessoas estão deixando de ler jornal, reclamam. As pessoas não têm tempo, nem saco para ler, sobretudo matérias longas. Ok, você venceu. Mas quem vai descrever, narrar a vida cotidiana para os que vierem depois? Os escritores? Os colunistas? Os blogueiros? Talvez seja isso mesmo e esteja em curso uma revolução na comunicação de massa da qual ainda não nos demos conta. O verdadeiro repórter não está nos bancos das escolas de comunicação. Na faculdade obtém-se apenas mais um diploma, que vai garantir melhores salários quando se conseguir passar num bom concurso público. O repórter de boa cepa está em seu apartamento filmando armações de traficantes e viciados como a velhinha que ganhou mais que 15 minutos de fama e uma senhora dor de cabeça no Rio de Janeiro.

Ser jornalista é uma profissão nobre ou não, como qualquer outra, dependendo do uso que se faz dela, da ética de cada um. Ser repórter é estado de espírito, é pedreira, é escolher o caminho mais difícil pelo simples prazer da aventura. Que o diga o finado Tim Lopes, um dos repórteres mais valentes da geração dos anos 70.

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Jornalista (em atividade como repórter), Cuiabá, MT