Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Seriam os políticos ventríloquos das empresas?

Matéria do New York Times de 14 de novembro último – e seu editorial do dia 16 – revela o que muitos de nós já sabemos, mas muito mais gente não tem a menor noção e o pior é que isso afeta malignamente a vida de todos nós, a curto, médio e longo prazos. Lobistas da indústria farmacêutica são ghost writers de declarações de legisladores que defendem leis que beneficiam esta indústria das drogas. Estaria esse vírus espalhando-se pelo jornalismo?

Embora romanticamente a profissão do relações públicas seja inferior à do jornalista, quando aquela é desempenhada nas grandes esferas esta última torna-se algo comparado a um animalzinho de estimação, severamente domesticado, guiada nos mínimos detalhes.Não bastasse o poder de fogo das contas publicitárias que limitam a liberdade de imprensa – de uma vez por todas, aceitemos isso, fica mais fácil quando a gente relaxa – o relações públicas parece não dar mais conta da sua capacidade de influenciar a opinião pública em detrimento da vocação do seu colega, o jornalista, que seria verdadeiramente o porta-voz imparcial do público em geral, incluídos aí indivíduos e entidades privadas e governamentais. Cuidado, coleguinha, quando olhar com desdém para o engravatado ao lado tomando cafezinho e que trabalha para uma agência de comunicação (nome genérico dos escritórios de relações públicas) ou firma de advocacia (de grande porte). Não só a sua pauta, mas o seu texto e até mesmo o seu histrionismo diante das câmeras podem estar sendo no mínimo sombreados, e não é com o manto salomônico dourado que cobre os campos de trigo; trata-se de um manto escorregadio e letalmente viral.

Um prazo generoso

A questão demanda vários ângulos de abordagem jornalística e várias especialidades também. Comecemos pelo jornalismo investigativo, já que a discussão científica do jornalismo (no Brasil) entrou na menopausa antes de ovular pela primeira vez (infelizmente é insípida, para não dizer mais nada). Atenção, não me refiro ao jornalismo científico, que, a propósito, é uma das especialidades que o assunto em pauta demanda engajamento, embora este seja o ramo do jornalismo que mais macaqueia os textos prontos das relações públicas – investigar esse negócio complicado para quê? Se está tudo pronto, é só editar, cortar para caber no formato? Parece que é isso que ocorre.

O jornalismo criminal também, o colunismo social (se é que é coisa para jornalista sério), talvez somente o jornalismo esportivo fique fora desta seara, mas pensando bem, se colocarmos em perspectiva a questão do doping e do sofisticado aparato médico que circula em torno dos atletas hoje em dia (ah, se o Garrincha fosse vivo), seria o caso de imaginarmos um batalhão de choque de jornalistas encarregados de destrinchar (ou destrincheirar?) o que realmente faz com que as lei que decidem a nossa saúde (o que é isso, Peazê? As leis decidem a nossa saúde? Decidem, mas o editor de qualquer jornal brasileiro cortaria ‘o que é isso, Peazê’).

O repórter Robert Pear, do New York Times, obteve cópias de e-mails de lobistas (um deles empregado de uma poderosa firma de advocacia, outro de uma das maiores firmas americanas de lobby, a Sonnenschein Nath & Rosenthal, por aí afora) e juntou o quebra-cabeças revelando as declarações de expoentes legisladores (políticos!) de ambos os partidos, Republicano e Democrata (curiosamente tratados em conjunto nos corredores de Capitol Hill, carinhosamente dito apenas Hill, de Rs & Ds, que não tem nada a ver com Resources/Recursos & Developments/Desenvolvimento, mas que infere a mesma coisa infere). Declarações estas que definem ‘disposições relativas às drogas produzidas pela indústria de biotecnologia. Disposições estas, por exemplo, permitiriam a concorrência dos genéricos aos caros medicamentos biológicos, mas só depois de o fabricante original ter sido beneficiado com 12 anos de uso exclusivo, um prazo generoso para os padrões de ninguém’. Traduzido da reportagem de Robert Pear (tradução de textos jornalísticos pela Clínica Literária).

O grande prêmio da bestialidade

A reportagem e subsequentemente o editorial citam uma fartura de nomes de congressistas dos dois partidos e de lobistas e concentram, sintomaticamente, o foco somente na empresa Genentech, cujos tentáculos o New York Times não divulga.

A Genentech é a maior indústria de biotecnologia (sediada a poucos blocos da Union Street, em San Francisco, onde Janis Joplin deu as primeiras espetadas sentada num meio-fio), dona da gigante farmacêutica Roche que por sua vez tem as suas ações controladas pelo J.P. Morgan Chase (algumas migalhas dessa ramificação de capitais são pulverizadas nos bancos acadêmicos do mundo todo que, por sua vez, fomentam/orientam as teses de mestrado e doutorado em várias áreas do conhecimento humano – isto é, sobra pouco espaço para a criatividade). Estes dados e muitos outros que não cabem neste artigo foram obtidos sem grande esforço na internet, lendo e analisando os web sites das empresas e nomes citados na reportagem do NYT.

O que se quer é dar um boa notícia, ou que seja uma má notícia desde que seja verdadeira, como se aprende na faculdade, como reza a colação de grau, como querem os defensores do registro da profissão de jornalista somente com a apresentação do diploma (cuja balela não foi votada esta semana no Congresso porque o congressista responsável não estava em plenário), então ficam em suspenso as perguntas:

Se a força das relações públicas está influenciando congressistas americanos, estaria influenciando também os brasileiros (note bem, relações públicas é como diplomata, tem trânsito transfronteiriço meio livre)? Estariam os jornalistas, não só brasileiros, sendo influenciados, ou dopados, a ponto de não traduzirem completamente o que se passa nos bastidores dos processos de decisão que afetam a vida de todos nós? Enquanto as respostas não são dadas, a indústria dos diagnósticos prospera, na pista ao lado cabeça com cabeça a indústria farmacêutica, um palmo atrás avança perigosamente a indústria de alimentos e a indústria das guloseimas (uma classificação não só de mercado, mas de implicações que merecem atenção específica da Anvisa diferenciada da indústria de alimentos e bebidas, pano pra manga), no segundo páreo, não menos impactante, a barbada da indústria da telefonia, turbinada pela internet, larga na frente, sempre, deixando a manca vida sustentável sobre este planeta a ver navios, um grande prêmio bestializando a platéia.

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Escritor e jornalista