Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Só a crítica genuína acabará
com o `jornalismo fiteiro´

O candidato Aloízio Mercadante confessa que está vivendo um pesadelo: Hamilton Lacerda, seu assessor, foi apontado pela Polícia Federal como um dos entregadores do dinheiro aos envolvidos com o Dossiê Vedoin e intermediário das negociações com o semanário IstoÉ. A PF também levantou o sigilo bancário e telefônico de todos os implicados no episódio (presos ou com mandado de prisão).


É a maior derrota já infligida ao jornalismo-fiteiro. Esta aberração está prestes a ser escorraçada tanto da nossa vida política como da prática jornalística. Quem a defende, paradoxalmente, são alguns observadores da imprensa. Neófitos, porém com tremendo poder de fogo.


O presidente-candidato Lula é um deles. Nos últimos 15 dias tem exibido fortes pendores para juntar-se ao clube universal dos media watchers. Convive com a mídia há, pelo menos, três décadas. Conhece o assunto, como leitor e destacado ator do processo político.


Por isso não deveria perder de vista este caso da IstoÉ e todos os seus desdobramentos. É exemplar, vitrine de um dos mais perniciosos desvios da nossa imprensa, mix de manipulação, irresponsabilidade, chantagem, corrupção, fraude, bandidagem e afins.


É evidente que todas as denúncias contidas neste dossiê devem ser investigadas, em todas as direções e até as últimas conseqüências. Mas para isso é indispensável que o caso seja mantido no noticiário. Arrefecer a cobertura significa garantir a sua sobrevida. Pergunta-se: a intensidade da cobertura do escândalo poderia prejudicar a candidatura do observador da imprensa Lula da Silva? Levemente. Paciência: quem deveria se preocupar com os efeitos perversos da sua traquinagem são os aloprados, aqueles que tornaram um pesadelo a vida do candidato Aloízio Mercadante.


Vitória da sociedade


Este derradeiro caso de ‘jornalismo fiteiro’ é paradigmático, mas é, sobretudo, inédito porque os seus protagonistas foram quase todos flagrados. Fitas, grampos, pastas e vídeos têm sido entregues com incrível assiduidade nas redações e aproveitados fartamente desde 1998 sem que os respectivos entregadores, receptadores, produtores e financiadores jamais fossem identificados. Os caminhos e descaminhos percorridos por este gênero de informação jamais foram mapeados. Agora estão escancarados e magnificados, visíveis a olho nu. O Dossiê Vedoin, Dossiêgate ou que nome tenha foi abortado e, graças a isso, está sendo exposto e esquadrinhado sem qualquer omissão.


O jornalismo brasileiro deve à Polícia Federal uma dádiva que poderá livrá-lo de uma degeneração que se mostrava crônica. Identificou o elenco, os coadjuvantes (esta perigosa fauna que procura infiltrar-se nas redações e aproximar-se dos gatekeepers) e flagrou o processo inteiro.


O mais importante: pela primeira vez a imprensa foi obrigada a tratar da imprensa. De maneira frontal. Tornou-se impossível contornar e disfarçar as falhas de um veículo jornalístico de projeção nacional, como é o caso da IstoÉ. Ao reconhecer as suas ovelhas negras, a corporação deixa de ser corporação. Esta é uma vitória da sociedade brasileira e dos leitores brasileiros. E se este triunfo do interesse público prejudica interesses partidários, a questão escapa da esfera da observação da mídia e transfere-se para outras esferas.


Arma retórica


Se a imprensa, doravante, conseguir manter-se atenta ao comportamento da imprensa, em pouco tempo desaparecerão certos conflitos de interesses e o exercício crítico poderá ser descontaminado do partidarismo e do jogo eleitoral que o viciam e o desqualificam.


Por isto chamam a atenção certas manifestações de leitores deste Observatório, furiosos com a cobertura do Dossiêgate. Um deles, totalmente enviesado, chega a acusar a imprensa de protofascista porque pela primeira vez ela parece estar engajada no desvendamento de um episódio que tem a própria imprensa como ponto de partida. (A expressão está evidentemente errada: o prefixo ‘proto’ designa antecedência, primazia; protofascista seria um antepassado ou precursor do fascismo).


Para o preclaro leitor a imprensa deve continuar ignorando suas mazelas e seus vexames. Insistir na cobertura do escandaloso episódio que tem a IstoÉ como pivô é, para este leitor, um ato contra o governo ou o partido do governo. Significa que o seu compromisso com a crítica é pontual, limitado. Em outras palavras, oportunista.


Quando Soninha Francine, jornalista e candidata a deputada federal pelo PT-SP, chama a imprensa de ‘sórdida’ – justamente porque desta vez a imprensa mostra-se empenhada em acabar com o ‘jornalismo fiteiro’ – fica-se com a impressão de que certos profissionais da mídia e certos políticos admitem conviver com esta excrescência desde que isto não prejudique seus interesses e suas opções políticas.


O exercício da crítica – em qualquer campo – exige coerência absoluta e entrega total. Tanto o presidente-candidato Lula como alguns dos seus seguidores-servidores, neófitos ou veteranos, estão utilizando a observação da mídia como mera arma retórica, munição para palanques.


Cospem nas rotativas que tanto os ajudaram no passado (para usar a felicíssima expressão do petista mineiro Paulo Delgado) e não ajudam o aprendiz de feiticeiro Aloízio Mercadante a escapar do pesadelo.