Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Só é refém de press-release quem quer

Um mito que corre como verdade sobre a prática do jornalismo brasileiro dá conta de que nossos periódicos são reféns prazerosos de assessores de empresas. Segundo essa premissa, que ocupa até mesmo algumas mentes qualificadas do nosso ambiente de comunicação, os editores, premidos pela urgência do fechamento, seriam excessivamente abertos à ‘plantação’ de pautas por parte das assessorias de imprensa. Premissa errada.

A realidade das assessorias de imprensa é a disputa diária por espaços na mídia e pela atenção dos jornalistas. Para a maioria delas, o fiasco das entrevistas coletivas esvaziadas é um risco permanente. Muitas adotam a tática da distribuição compulsiva de press-releases, na esperança de que a ampla semeadura renda alguma colheita. Outras têm como prática o cultivo de relacionamentos e a escolha de momentos apropriados para inserir uma nota, um artigo, um tema de reportagem. Assessores de imprensa normalmente trabalham mais horas por dia do que os profissionais das redações. Muitas vezes são tratados como uma subespécie da raça, como corsários à espera de uma oportunidade para conspurcar a pureza das redações.

Quando a necessidade corre na mão contrária, assessorias podem ser a salvação da pátria, pois executivos importantes não estão sempre disponíveis para atender aos repórteres, e a intermediação de assessores é uma necessidade de suas agendas.

Quando o repórter tem acesso direto e fácil à fonte, corre o risco, por outro lado, de se tornar monotemático, recorrendo sempre às mesmas opiniões. Por isso vemos a ocorrência de fenômenos como os ‘setoristas do Maílson’, aqueles jornalistas que vivem entrevistando o ex-ministro Maílson da Nóbrega sobre qualquer tema, simplesmente porque ele está disponível. O ex-ministro e outras personalidades que se tornam figuras correntes na imprensa sempre respondem, pois seu interesse é permanecer na mídia e eles entendem que podem contribuir para dar o ‘viés correto’ às reportagens. O mesmo ocorre com políticos, artistas, candidatos a celebridades.

Qualidade inferior

No dia-a-dia, ocorre um toma-la-dá-cá de muitas negociações, mas no geral os repórteres tentam driblar o cerco de assessorias que não estão dispostas ou não estão autorizadas a dar acesso a seus clientes. Os melhores repórteres cultivam fontes variadas e, na falta ou indisponibilidade da fonte principal, buscam a informação no chamado mercado, em fontes do setor. Consultores, analistas, agentes financeiros e os chamados advisers acabam revelando peças que, bem-organizadas pelo jornalista, rendem reportagens mais bem-acabadas do que aquelas obtidas da entrevista direta com o protagonista ou o interessado principal na história.

Pode acontecer em um ou outro veículo, durante um fim de semana prolongado ou em circunstância de fechamento complicado, mas no geral não se vê nas redações a passividade que se imagina diante do assédio das assessorias. Um press-release bem-feito pode ser o começo de uma boa pauta, mas raramente é recebido como a jóia da coroa da edição. Mesmo nos fechamentos mais estressados, a prática corrente é cumprir a pauta programada.

E é aqui que nasce esse mito. De fato, desde que foram informatizadas as redações, o processo de edição se tornou excessivamente dependente da agenda. Muitas vezes essa programação é feita na noite anterior, com base em circunstâncias que podem ser completamente diferentes no momento da edição. As redações são reféns da agenda, não das assessorias. Muitas delas se tornam dependentes de assessorias porque não conseguem dinamizar suas pautas. Não dão flexibilidade à pauta porque a linha de comando é excessivamente verticalizada.

Há outro aspecto. No Brasil, publicidade, marketing e relações públicas são práticas profissionais mais avançadas, em termos de gestão, do que o jornalismo. Sob qualquer ponto de vista, da estratégia ao controle de processos, a prática jornalística revela cuidados e qualidade claramente inferiores ao comum das empresas que cuidam de planejar, criar, divulgar, promover e consolidar, na opinião pública, opiniões que interessam exclusivamente a empresas ou setores específicos da sociedade. A instituição que, naturalmente, estaria destinada à defesa dos interesses comuns da sociedade não tem instrumentos eficientes para negociar em condições de igualdade com o poder de convencimento das organizações dedicadas à comunicação de interesse corporativo.

O gestor e o caráter

As agências de publicidade e empresas de marketing contam com instrumentos mais eficientes para acompanhar os interesses do público-alvo de seus clientes, as assessorias de imprensa mais qualificadas mantêm atualizado o conhecimento sobre a mídia, sobre o perfil de editores, sobre práticas, preferências e rotinas dos jornalistas que lhes interessam influenciar, e se mantêm sintonizadas com a estratégia de seus clientes.

As empresas de jornalismo são geralmente dirigidas na base da intuição que se alimenta de premissas. Entre elas e as outras empresas do setor de comunicação há um abismo de eficiência, modernidade, planejamento. Talvez pelo fato de serem na maioria oriundas de estruturas familiares, predomina nas empresas jornalísticas o voluntarismo dos mandantes, que vaza para todo o sistema e dificulta a adoção de práticas mais eficientes de gestão. Quando a estrutura familiar se retira e a empresa se ‘profissionaliza’, geralmente à custa da cessão de parte da propriedade – e do direito de opinião – aos investidores, surge o risco da perda de autonomia.

Se há alguma dependência ou vulnerabilidade nas redações, ela nasce dessa diferença fundamental entre bons administradores e meros mandantes. Na falta do apoio de uma estratégia clara e de instrumentos efetivos para a análise dos temas que precisam abordar, os repórteres precisam se valer de suas próprias convicções para manter a autonomia em relação a fontes que têm interesses específicos a defender. Do outro lado do balcão, outros profissionais de comunicação tentam convencê-los de que esta ou aquela informação atende ao interesse público. Se, nessa negociação, o jornalista tem o respaldo de bons gestores, o risco de se tornar refém de press-releases depende apenas do seu caráter.

O resto é mito.

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Jornalista