Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre a origem do craque de futebol

Em sua coluna deste sábado, 19/6, no prestigioso sítio eletrônico NoMínimo, Roberto Benevides publicou um artigo – ‘A bola corre para a Europa’ – no qual encontramos o seguinte parágrafo [grifo meu]:

Mais curiosa ainda é a exceção quando se lembra que os incomparáveis craques do Brasil e da Argentina têm como antepassados os portugueses e espanhóis que, no século XVI, trocaram a península ibérica pela América do Sul. Há quem diga que o Brasil deve a fartura de craques à porção afrodescendente de seu povo. Pode ser, mas a Argentina quase não tem negros e nunca deixou de ter craques. Em Portugal e na Espanha é que eles não vingam.

Em fevereiro deste ano, em artigo publicado neste Observatório (‘Como usar o ‘bom senso’ para gerar bobagens’), apresentei uma lista com exemplos de afirmações inconsistentes comumente encontradas em nossa mídia. Afirmações construídas apenas com a ajuda do ‘bom senso’ podem parecer corretas para quem faz uma leitura apressada ou superficial, mesmo quando escondem argumentos inconsistentes. Um dos exemplos que usei tem a ver justamente com a questão da origem do craque de futebol, a saber:

Jogadores de futebol afrodescendentes são inerentemente mais habilidosos do que os não-afrodescendentes, pois a ginga de corpo é uma característica própria de negros e mulatos.

Não sou especialista em comportamento humano, embora me interesse pelo estudo do comportamento animal (insetos herbívoros, em particular). Ainda assim, tomo a liberdade para especular e, nos parágrafos que se seguem, apresento uma hipótese explicativa para a questão da origem do craque, entendido aqui como um jogador fisicamente mais habilidoso que os demais.

Começo com um provocação: sabe por que o futebol praticado por paulistanos (e por moradores de outras grandes metrópoles pelo mundo afora) é e continuará sendo medíocre? Simplesmente porque faltam campos de futebol de livre acesso na cidade de São Paulo. (Não se iluda: em muitas cidades brasileiras, o acesso aos poucos campos de várzea disponíveis não é livre. Ao contrário, é pago – i.e., os jogadores pagam para jogar, com um detalhe curioso: os goleiros pagam menos! No fim das contas, cria-se também um círculo vicioso: como o acesso aos campos é controlado, os controladores terminam sendo personagens políticos importantes – digamos, cabos eleitorais poderosos. Conheço casos assim, aqui na Zona da Mata mineira.)

Todos aqueles trejeitos de corpo que fazem com que um jogador seja considerado um grande craque de futebol (ou de qualquer outro esporte) não têm nada a ver com a cor da pele, a geografia, a origem social ou qualquer outras dessas ‘explicações’ mixurucas que os jornalistas costumam evocar em seus artigos. Aqui, como em tantos outros casos, a contribuição da genética é pífia ou apenas indireta (ver Lewontin, R. 1984. La diversidad humana. Barcelona, Editorial Labor). Tudo ou quase tudo que faz a diferença entre um grande craque e um jogador que é, digamos, apenas aplicado teria a ver com um outro processo: a aprendizagem por imitação. E isso incluiria desde o jeito de chutar até a maneira de conduzir a bola com os pés, passando pelos dribles usados para deixar para trás os adversários.

Explicando melhor: trejeitos de corpo são aprendidos por imitação, quando somos ainda bem pequenos, a exemplo do que ocorre com outras habilidades, incluindo, por exemplo, o jeito de falar ou gesticular com os braços. Quando somos pequenos, capturamos muita coisa do ambiente de modo inconsciente, através do que parece ser uma ‘janela de oportunidades’. Com o amadurecimento, porém, essa janela se fecha e aí não há mais como absorver as coisas do mesmo jeito de antes. É por isso, por exemplo, que na idade adulta achamos tão difícil aprender e falar corretamente um segundo idioma – que dizer, nós refletimos conscientemente sobre o processo, ao invés de simplesmente absorver as novidades. De modo semelhante, seria muito difícil se transformar num craque de futebol a partir de uma certa idade.

Nada com etnia

Os pais que matriculam seus filhos em ‘escolinhas de futebol’, imaginando que um adolescente perna-de-pau pode vir a se transformar em um Dirceu Lopes, por exemplo, estariam, portanto, simplesmente jogando dinheiro fora. É bom enfatizar: praticar esportes em escolinha de futebol pode ser algo saudável e prazeroso. Mas a questão aqui é outra: o que estou querendo dizer é que essas escolinhas de futebol não poderiam efetivamente cumprir o que anunciam, isto é, não poderiam formar craques. Por quê? Porque a transformação de um ‘não-jogador’ em um ‘craque’ seria essencialmente um processo de aprendizagem por imitação, mais ou menos restrito à idade infantil.

Para alguém vir a se tornar um craque deve contar com um certo conjunto de atributos físicos favoráveis, não há dúvida (miopia, por exemplo, atrapalha, embora não impeça), mas precisa principalmente aprender no lugar certo. Nesse sentido, a melhor escola de craques seria um campo de várzea (ou uma quadra de esportes) de livre acesso, especialmente quando em torno dele há uma certa mistura de gerações: crianças pequenas, por exemplo, esperam sua vez de jogar enquanto assistem partidas entre jogadores mais velhos. Nesse momento, as crianças têm chance de aprender (mesmo sem se darem conta disso) duas coisas fundamentais: primeiro, repetir aquilo que os craques fazem; e, segundo, evitar cometer os mesmos erros dos pernas-de-pau.

Vale notar que essa hipótese explicativa tem um desdobramento demográfico, a saber: se craques surgem por imitação, então o número de craques deve aumentar em razão do aumento no número de campos de livre acesso existentes (numa cidade ou num país, por exemplo). Concluindo, o Brasil seria o ‘país do futebol’ – do mesmo modo como os EUA seriam o ‘país do basquete’ (esporte que também envolve trejeitos e ginga de corpo) – por razões que nada têm a ver com etnia, como querem crer muitos de nossos cronistas esportivos mais ufanistas.

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Biólogo, autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)