Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre ‘aves de mau agouro’

Para responder a algumas afirmações, serve o conhecido adágio ‘os cães ladram e a caravana passa’. Em contrapartida, o velho provérbio português ‘quem não se sente não é filho de boa gente’ também se lhes pode aplicar. Tudo depende de quem fala e de quem ouve. Tudo depende das motivações percebidas no primeiro, e da personalidade e do estado de espírito do segundo.

Entre o desprezo absoluto e o litígio, há, porém, toda uma gama de reações possíveis, nas quais cabe o comentário solto, en passant, como diriam os franceses, só para que se não pense que aquelas afirmações caíram em saco roto, e que quem as leu enfiou a carapuça. Enfim, um comentário para repor as coisas no seu devido lugar.

Na semana retrasada, Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da República Federativa do Brasil, insinuou perante uma assembléia que o escutava que os jornalistas são aves de mau agouro.

Apesar de estrangeiro, não deixei de me sentir um tanto incomodado, uma vez que a infeliz comparação também me diz respeito, a mim, jornalista português a viver no Brasil por opção, com todas as autorizações legais, lado a lado no dia-a-dia com a mesma classe profissional, tentando contribuir dentro das minhas capacidades para a melhoria de qualidade de vida do povo brasileiro.

É verdade que, muitas vezes, eu gostaria mesmo de ser um passarinho, para poder testemunhar, sem ser enxotado, as tramóias que se armam enquanto o povo dorme, ou enquanto vê telenovelas e futebol, às custas do dinheiro dos seus impostos, a coberto dos votos que expressou em sede eleitoral própria. Mas não seria ave de mau agouro, por não ser essa nem a minha vocação, nem a minha vontade.

Se eu tivesse asas, escolheria levar e trazer boas novas, escritas por mãos generosas, atadas por ramos de oliveira. No entanto não sou ave nem oráculo. Sou homem e jornalista, consciente da minha missão de informar, analisar, interpretar, esclarecer e ajudar a formar opinião junto dos meus leitores, a razão de ser da minha atividade, por forma a que eles possam ser agentes de transformação do mundo, segundo aqueles valores humanistas que independem do tempo e do espaço. E dessa missão não abdico, procurando cumpri-la com dignidade, competência técnica, independência e isenção, sem mensalões nem mensalinhos – que me perdoem a referência.

Quando o presidente Lula sugere que os jornalistas são aves de mau agouro, eu entendo o desabafo de quem gostaria que cada notícia dada ao público fosse uma pincelada de ouro sobre um fundo verde, totalmente despoluído. Mas, infelizmente, essa não é a realidade que se pode transmitir neste momento acerca do país.

Quando o presidente Lula sugere que os jornalistas são aves de mau agouro, eu entendo o desespero de um homem que vê alastrar um lamaçal de imoralidade, criado pelo partido que ele próprio fundou.

Mas, quando o presidente Lula sugere que os jornalistas são aves de mau agouro, eu vejo também o homem que odeia e não respeita a comunicação social, porque não consegue controlá-la e, por isso mesmo, a teme.

Ele gostaria que a comunicação social o bajulasse e dele transmitisse apenas virtudes, mesmo as mais básicas que qualquer cidadão se obriga a cultivar. Ele gostaria que a comunicação social o engrandecesse e dele divulgasse só os feitos, mesmo os que não têm qualquer valor social para além da propaganda. Afinal, foi isso que ele sempre procurou, quando ainda fingia ter um bom relacionamento com a comunicação social.

Ele gostaria, e muito, da comunicação social, se pudesse trazê-la no bolso para sacar dela quando lhe aprouvesse e, como num teatro de fantoches, através dela mostrar como é despojadamente preocupado com o bem-estar social, que antes dele nada foi bom e que depois dele será o dilúvio. Mostrar, afinal, como ama o povo, como é um pai do povo com coração de mãe.

Bem o tentou, há meses, quando quis fazer aprovar a criação da Conselho Federal de Jornalismo, uma censura, encapotada sim, mas nem por isso com menos algemas, vendas, tampões e mordaças, tudo armado à sombra de uma suposta legalidade. Frustrado o projeto, o presidente destila veneno sempre que a comunicação social resiste aos seus apelos sedutores para calar a verdade, ou para distorcer a verdade.

É precisamente porque não consegue controlá-la, e porque a teme, que se tem recusado, sistematicamente, a dar uma entrevista coletiva que esclareça em definitivo o país, um país que sofre de angustiadas dúvidas e dolorosas decepções. Entende-se por que não quer expor-se a perguntas incômodas dos jornalistas. Entende-se que mande para a frente de batalha alguns dos seus oficiais que depois elogia, embora eles também nada esclareçam de essencial.

Neste momento e neste contexto, a comunicação social não só não lhe serve, como contraria os seus desígnios. Por isso chama aos jornalistas aves de mau agouro.

O agouro, bom ou mau, faz-se a partir da realidade quotidiana, e essa realidade é descrita pelos jornalistas, não é por eles construída. Os profissionais da informação limitam-se a mostrar, não sem dificuldades, é certo, pois muitos são os obstáculos criados por aqueles que pretendem desviar as atenções da nudez do rei, pelo preço da satisfação de interesses meramente pessoais, muitas vezes inconfessáveis.

Os destinos do povo devem estar nas mãos do povo, ainda que por delegação nos líderes que livremente escolheu. Mas para optar, para decidir, para impor o rumo pelo voto, o povo precisa de ser informado com clareza, rigor e objetividade. Essa é a missão do jornalista. Poderá não funcionar desta maneira nas ditaduras, vermelhas ou brancas, mas sempre foi assim em democracia. E o Brasil é uma democracia reconhecida internacionalmente, mesmo pelas ditaduras.

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Jornalista