Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sobre reducionismos e ressentimentos

Todo dia é dia de alguma coisa; cada momento, uma efeméride. Na manhã do sábado, 5 de junho, quando o barco irlandês Rachel Corrie era levado pela marinha de Israel para o porto de Ashdod e encerrava-se a ação para furar o bloqueio de Gaza, alguém deveria lembrar que 43 anos antes iniciava-se um dos mais celebres conflitos militares da era moderna, a Guerra dos Seis Dias.


A rememoração faz sentido e não apenas porque os dois eventos ocorreram quase na mesma data e no mesmo lugar, mas porque aquele espetacular triunfo militar israelense ao liquidar simultaneamente os exércitos e aviação do Egito, Síria e Jordânia acionou uma drástica reversão na imagem de Israel que culminou agora com o fiasco político do ataque ao barco turco Mavi Marmara.


Israel ganhou aquela blitzkrieg, mas excetuando a paz com o Egito – corajosa iniciativa do presidente Anuar Sadat (1918-1981), sucedida pela paz com a Jordânia – perdeu quase todas as batalhas políticas e diplomáticas subseqüentes.


Pluralidade ideológica


O estado de sítio pode ser visto sob o ângulo juridico-institucional, mas neste caso é a representação de uma mentalidade. Israel está sitiado num poderoso bunker criado por ele e, não esqueçamos, pelos que o ameaçam de aniquilamento total. A capa da revista The Economist que circulou na Europa e EUA na sexta feira (4/6) captou dramaticamente esta dualidade – ‘Israel´s siege mentality’ – o poderio de um Estado convertendo a sociedade em refém do pavor.


Nossa imprensa não consegue este nível de profundidade, contenta-se com a titulação condenatória e um opinionismo sucinto. Os repetidos testemunhos de Iara Lee, cineasta-militante brasileira-americana, sobre o estúpido ataque do comando israelense não oferecem ao leitor a dimensão trágica deste novo capítulo do confronto Israel-palestinos. O mesmo deverá acontecer com o depoimento da médica-militar brasileira-israelense Ana Luiza Tapia (levada ao Mavi Marmara para atender as vítimas) que já circula na internet em igual nível incidental.


O portal UOL, no entanto, foi forçado a oferecer na sexta-feira (4/6), um inédito e instrutivo debate entre dois jornalistas brasileiros da comunidade judaica: Sérgio Malbergier, ex-editor-internacional da Folha de S.Paulo, agora analista do Folha.com, e Breno Altman, do site Opera Mundi. Começou com um texto de Malbergier, que se apresentou como parente de vítimas do Holocausto e defendeu com energia a ação do governo de Israel. Horas depois, Altman contesta, na mesma condição de parente de vítimas do Holocausto, condenando com veemência o Estado de Israel e não apenas no caso específico do bloqueio de Gaza.


Além de confirmar as vantagens da internet (quando consegue organizar o material informativo) e a sua incapacidade para produzir ecos mais consistentes, a polêmica entre os jornalistas judeu-brasileiros torna-se relevante justamente porque fica obrigatoriamente restrita ao conflito israelo-palestino, desvinculando-o de remissões históricas às vezes intencionalmente perversas.


A leitura que se pode fazer desta brevíssima, virtualíssima e didática discussão é que as comunidades judaicas da Diáspora não são monolíticas nem se alinham dogmaticamente às posições de Israel. O confronto Malbergier-Altman é antigo, anterior à partilha e à criação do Estado de Israel, e reflete, antes de tudo, uma pluralidade ideológica que não se encontra no mundo islâmico, exceto talvez na Turquia.


Infortúnio maior


A revista Veja, que está longe de ser classificada como esquerdista, publicou neste fim de semana corajoso texto de um eminente economista-cientista político brasileiro, judeu, Gustavo Iochpe, contra a mentalidade política do atual governo israelense (edição 2168, pág. 112). El País, que segue uma linha oposta e ostensivamente progressista, inseriu na sua página de opinião de domingo (6/6) candente condenação de Israel assinada pelo poeta argentino, judeu, Juan Gelman (Prêmio Cervantes, 2008).


Este esforço para nuançar e desfazer reducionismos, além de exercício de bom jornalismo, é principalmente um compromisso humanista. Pode servir, ao mesmo tempo, para furar as bolhas de intolerância que a pretexto de antissionismo descambam sempre para o mais puro antijudaísmo.


Este talvez seja o maior infortúnio do judaísmo contemporâneo: não se fazer ouvir dentro da fortaleza israelense nem desarmar os velhos ressentimentos e o seu inesgotável arsenal de pretextos.


 


Leia também


Um barco chamado Rachel – A.D. [Diário de S.Paulo, 4/6/2010]