Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tirando o pitonismo não sobrou nada

Manchetes de sábado (1º/7) de alguns dos principais jornais populares que circulam no Rio de Janeiro: ‘Hoje Zidane se aposenta’ (O Dia); ‘Argentin…ahahahaha!’ (Extra); ‘Hoje é dia de devorar o pão francês’ (Meia Hora).


A colaboração da mídia para o ambiente de histeria criado durante a Copa do Mundo é suficientemente conhecida. Assim como para a desinformação do torcedor. A mídia foi a peça fundamental para criar o clima doentio que se instalou num país que ama o futebol. Foi também a grande responsável por dar ao público a falsa impressão de que, em 2006, a seleção ainda é a pátria de chuteiras. Pois já faz tempo que as chuteiras é que são a pátria da seleção.


Nunca os jornais e as emissoras de TV mandaram tanta gente para a Copa. Nunca mandaram tantos humoristas, poetas e especialistas em futilidades. O mais grave não é o simples exercício de ostentação, e nem mesmo a crença – editorialmente absurda – que em clima de Copa do Mundo é a Copa que deve inspirar todos os profissionais do achismo, seja lá em que áreas eles se abriguem.


O pior é o irresponsável exercício de criação de ilusões com as quais seus criadores não sabem lidar – e onde o grande prejudicado é o ingênuo consumidor do mito, que faz dele um norte em sua vida, enquanto o construtor do mito tem a prerrogativa de sair de fininho e dormir embalado pela própria frivolidade.


O mesmo Nelson Rodrigues, que cunhou a expressão ‘pátria de chuteiras’, inferia que quando um jornalista não sabe fazer nada, vira crítico de teatro. Hoje vira crítico de qualquer coisa. O futebol ganhou uma relevância muito grande para a vida da nação. Isso gera grandes receitas para a mídia, mas também responsabilidades compatíveis. Ou se faz a população acreditar que a Copa do Mundo é a coisa mais importante de suas vidas, ou não se fala levianamente sobre ela.


Motivo de piada


Uma das grandes frases da fase pós-desclassificação veio do comentarista Milton Neves, no programa Terceiro Tempo de domingo (2/7): ‘O dia que proibirem o pitonismo no jornalismo, a gente vai perder 50% do nosso espaço’.


Milton – que é seguramente um dos maiores conhecedores de futebol do país – fez um apaixonado editorial responsabilizando Parreira pela derrota. Foi contestado por três dos participantes do seu próprio programa: o treinador Wanderley Luxemburgo – que Milton apontava como o sucessor do atual técnico da seleção – e os comentaristas Osmar de Oliveira e Oscar Roberto Godoi.


Ao longo da Copa, comentaristas como os do Terceiro Tempo – e também na Globo, na Sportv e na ESPN – cumpriram adequadamente os seus papéis. Na sua maioria, conseguiram ser mais críticos do que deslumbrados.


Foi no jornalismo generalista que a seleção se transformou na Ilha de Caras. Ali é que a imprensa demonstrou que não estava a serviço dos espectadores brasileiros, mas da construção de um circo onde os jornalistas é que eram os verdadeiros palhaços.


Ironicamente, deve-se creditar a um dos jornalistas mais criticados durante o campeonato um dos desempenhos mais equilibrados. Galvão Bueno foi de longe a voz mais ouvida no país durante toda a Copa do Mundo. Individualmente, consistiu-se na maior influência sobre dezenas de milhões de brasileiros durante a competição. Pois foi de Galvão que, segundos antes do início de Brasil x França, veio a advertência: ‘Isso é apenas um jogo de futebol’.


Galvão Bueno, que virou motivo de tantas piadas, foi na verdade uma influência ponderada e conseqüente para o grande público, assim como a maioria dos comentaristas que desempenharam seus papéis tanto na Globo quanto na TV fechada, na Sportv e na ESPN. Por meio deles o brasileiro viveu de forma equilibrada as alegrias e os dramas da competição.


Pedido constrangedor


A cobertura das partidas superou amplamente a cobertura extra-jogos da Copa. Ela acompanhou o desenvolvimento técnico das transmissões esportivas pela televisão, que tem sido uma expressão marcante das aplicações do desenvolvimento tecnológico do veículo. Há menos de 20 anos, os jogos eram transmitidos com três câmeras, às vezes duas. Hoje são quase 30 – algumas delas sobre gruas ou carrinhos correndo nas laterais, outras totalmente consignadas a detalhes para os replays.


Transmissões esportivas se modernizaram e, no Brasil, reproduzem apenas discretamente os excessos da espetaculosidade instalada, por exemplo, na televisão norte-americana. Os gráficos computadorizados funcionam bem, quando a televisão não se rende à tolice das estatísticas, muitas delas relacionando a partida que está sendo vista com jogos realizados há 60 anos.


Nas transmissões digitais em DTH, o espectador já pode escolher o ângulo em que quer ver as jogadas e, com as plataformas digitais de televisão aberta, as emissoras poderão optar por transmitir os jogos desta maneira.


Fora dos estádios, no entanto, a relação de subserviência instalada entre a seleção e a maior parte da imprensa dificultou a compreensão pelo torcedor brasileiro do que efetivamente se passava no time pelo qual ele estava torcendo. O culto às celebridades tornou-se consensual e obscureceu o enfoque sério sobre uma competição que a mídia colaborou para que se tornasse tão importante para a sociedade brasileira.


Faltou explicar ao torcedor, por exemplo, como se dá a relação atual entre os jogadores, a comissão técnica e a imprensa. Faltou mostrar que no modelo atual da seleção brasileira não entram em campo 11 jogadores, mas 11 grandes corporações. Na busca por entrevistas estúpidas e desiguais, a imprensa foi servil a essas corporações, o que não se tornou visível somente por meio do constrangedor pedido de desculpas da Globo pela leitura labial de Parreira, mas em todos os momentos em que se dava o encontro, completamente vertical, entre a mídia e os produtos criados por ela.


Sem grandeza


O Brasil perdeu a Copa sem que o brasileiro entendesse por que essa competição é tão importante para ele e o que de fato se passou na Alemanha. Acompanhou, pela televisão e pelos jornais, inúmeras reportagens auto-referentes nas quais o deslumbramento pelo turismo de almanaque, e a possibilidade de ser reconhecido de longe por alguma das celebridades, era infinitamente maior que a capacidade de falar seriamente sobre uma competição que foi tão dramaticamente elevada ao Olimpo do imaginário da sociedade brasileira.


Para esta imprensa, começam agora outras gracinhas – as eleições presidenciais, por exemplo. Para o torcedor, ficará por muitos anos o rescaldo de um furacão que ele não viu de onde veio e não tem ainda a menor idéia para onde irá.


Ele se lembrará dos erros de Ronaldo, Roberto Carlos e Cafu. Mas não terá a mais tênue lembrança das manchetes como as do sábado do jogo, que fizeram a sua cabeça – porque a imprensa que vive de cultivar a leviandade não tem a grandiosidade e muito menos a competência para zombar de si mesma no dia seguinte.