Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tudo está malposto neste debate

Numa nota do caderno ‘Ciência’, da Folha de S.Paulo (sexta, 6/1), lê-se o seguinte título: ‘Nutrição: Batata frita não causa câncer, diz estudo‘ [acesso apenas para assinantes da Folha ou do UOL].

Esse título é, no mínimo, engraçado. Afinal de contas, cocaína não causa câncer, homens-bomba não causam câncer, FHC-Bornhausen não causam câncer e a falta de imprensa democrática tampouco causa câncer. Nem por não causarem câncer esses agentes fazem menos mal à saúde pessoal ou social. Batata frita mata pelo colesterol. Quero dizer: nem por não causar câncer, a batata frita mata menos.

Pra começo de conversa, aquele estranhíssimo título da Folha de S.Paulo significa uma coisa, no caderno ‘Ciência’, e significaria coisa bem diferente na coluna do Macaco Simão, ou na página 2, como editorial da Folha de S.Paulo. E não faria falta a ninguém se jamais fosse publicado.

O tal título da Folha fez-me pensar na importante polêmica que está rolando solta, bem-vinda, no Observatório da Imprensa.

Lá, Alberto Dines escreveu ‘Até quando Lula vai continuar massacrando a imprensa?‘. Imediatamente, choveram respostas, em que muitos leitores reagem ao texto de Dines. Jornal democrático, o Observatório publica os ‘dois lados’. As respostas dos leitores podem ser lidas aqui]. Um dos leitores, por exemplo, nessa coluna-resposta, escreve:

‘Nada disso, Dines. Lula não massacra nenhuma imprensa. Lula é massacrado, pode-se dizer programaticamente, em toda a mídia de jornalão, no Brasil. Que ‘massacre’ é esse em que os jornais publicam o que quiserem, independentemente da existência de provas? […] Que ‘massacre’ é esse em que a imprensa faz o contrário do confessado pelo ex-ministro Ricupero, ou seja: ‘o que é ruim a gente mostra, o que é bom a gente esconde’? Que ‘não-massacre’ é esse em que as reportagens só ouvem um lado da notícia?’

Duas imprensas

Antes de tudo e em todos os casos, deve-se festejar que ainda haja um Observatório da Imprensa, no Brasil. Alberto Dines não causa câncer.

Por menos que eu concorde com o que Dines escreve – e, nisso, estou de acordo com os leitores que responderam ao Dines, contraditando-o –, entendo que todas as opiniões devem encontrar espaço na chamada ‘imprensa’, para publicar diferentes opiniões, sempre, em todos os casos. Jornalistas têm partido, e isso é inevitável. O que Alberto Dines publicou é a opinião pessoal de Alberto Dines e é bem-vinda. E deve-se festejar também – e muito! – que ainda haja um Observatório da Imprensa que publica também o contraditório, quer dizer, as opiniões pessoais dos leitores, mesmo que, como nesse caso, a opinião dos leitores seja totalmente divergente da opinião do dono do jornal e do colunista.

Mas, passada a fase dos parabéns, sou de opinião que, nesse caso, TUDO está malposto, também no Observatório. De um lado, Lula massacra a imprensa, sim, mas massacra pouco e massacra errado. De outro, a imprensa massacra Lula, sim, mas massacra demais e massacra errado. E Dines não ensina seus leitores a perceberem que, sim, há duas imprensas ativas no Brasil.

Arapuca brabíssima

Assim, fica Dines de um lado massacrando (também) o presidente, o meu voto e voto dos leitores-eleitores de Lula; e de outro lado, ficam os leitores-eleitores de Lula esperneando como podem, mas, coitados de nós, ainda ser ver com clareza a questão política que, no Brasil, parece estar criando duas imprensas… que nem Dines vê; e, se vê, não mostra.

Cria-se assim uma briga de cegos, com faca, no escuro, na qual todos sempre podem ter alguma razão, em algum momento da briga; e pode acontecer de ninguém jamais ter toda a razão, em nenhum momento da briga.

Ocorre-me que, nessa disputa sobre quem massacra quem, em 2005, no Brasil pós-tucanaria (‘Lula massacra a imprensa?’ ou ‘A imprensa massacra Lula?’), podemos estar todos presos numa arapuca desse tipo, de conceitos mal discutidos. Pode ter-se criado, também nesse caso, uma daquelas arapucas brabíssimas, em que a discussão vai subindo de tom, na agressividade, sem que melhore sequer uma vírgula, na direção de alguém ver e entender o que, de fato está em discussão e em disputa.

Todos os incautos

Podemos, todos, estar-nos enrolando em briga de torcedor, em que um grita que foi pênalti e o outro grita que foi abraço&beijo-na-boca, e imediatamente o pau quebra… apenas porque (i) ninguém tem qualquer interesse em ver (e gritar) que foi, mesmo, as duas coisas, ao mesmo tempo; e porque (ii) ninguém tem poder suficiente pra fazer parar, de vez, o quebra-pau, pra pôr ordem no galinheiro.

É mais ou menos como um jornal noticiar que batata frita não causa câncer: isso não é, propriamente, notícia; é uma completa besteira, mal pautada, mal pensada e mal-escrita. O caso da batata frita, portanto, não pode ser discutido, sequer, como se fosse jornalismo. Mas deu no jornal; portanto, parece que pode ser discutido como se fosse jornalismo.

Aí, então, em dois parágrafos, a arapuca está armada, pronta pra engolir incautos de todos os tipos: 25% do público-leitor se engajará na defesa dita científica da batata frita; 25% do público-leitor abraçará a causa oposta e se engajará no ataque dito científico à batata frita; 25% do público não dará bola alguma à discussão, porque não gosta de batata frita; e 25% do público preferirá o câncer.

Mais e melhor

NINGUÉM, em todo o público-leitor, até aqui, aprendeu, pela manchete, ou pelo jornal, ou pela discussão social, ou pela universidade, a perguntar, antes de engajar-se na tal discussão: ‘Que imprensa publica essa notícia?’

Sem responder, no mínimo, a essa pergunta, não pode haver NENHUMA discussão consistente, nem sobre imprensa nem sobre coisa alguma. E, de fato, não há, mesmo, proposta, até aí, nenhuma discussão, nem sobre batata frita, nem sobre câncer, nem sobre imprensa, nem sobre Lula nem sobre o governo Lula – e nem no Observatório.

Eu já disse que, na minha opinião, Lula deveria massacrar mais a imprensa e massacrá-la melhor. É essa, sim, exatamente, a minha opinião. No caso da polêmica oferecida pelo Observatório, pode-se dizer que Lula, ao massacrar a imprensa, deveria cuidar, também, de explicar que há uma específica imprensa, no Brasil, que é mais empresa, afinal de contas, do que imprensa, e que essas empresas de imprensa têm interesses econômico-político-partidários muito importantes. E que esses interesses estarão em jogo e em disputa (enlouquecidamente feroz, em briga de vida ou morte) nas eleições de outubro.

Malhar, malhar, malhar

Para organizar o argumento, pode-se dizer que há duas imprensas, no Brasil. A imprensa de que o presidente Lula fala pode-se chamar de imprensa-P. Ela existe, sim. E ela massacra o presidente Lula, e sem parar. De fato, essa imprensa-P massacra também o meu voto e o voto de mais de 60 milhões de brasileiros que elegemos Lula em 2002. E o faz incansavelmente e programaticamente, todos os dias, sem folgas nem domingos. Há, portanto, sim, uma imprensa-P, no Brasil, que massacra Lula, indecentemente, golpistamente, e sem parar um dia, de fato, sem parar, mesmo, desde o primeiro dia do governo Lula. Até Danuza Leão massacra o presidente Lula e o meu voto. O presidente Lula, portanto, reclama com muita razão.

Mas essa imprensa-P já praticamente nada tem ou faz de jornalismo. Essa imprensa-P está sendo usada, hoje, exclusivamente, como instrumento de propaganda de idéias econômico-político-partidárias. De fato, essa imprensa-P é usada como instrumento de malho de marketeiro, malhando a opinião pública, em movimento que me parece bem claro, de propaganda eleitoral antecipada e ilegal.

Essa imprensa-P não tem nenhum interesse em informar alguém sobre alguma coisa; seu único interesse é malhar, malhar, malhar, em empreitada de propaganda de desdemocratização do leitor-eleitor. Já não se trata de fazer nenhum jornalismo, para essa imprensa-P. No Brasil-2005/6, toda essa imprensa-P é partidária e tucana. Ou, dito de outro modo: essa imprensa-P tem, de jornalismo, o mesmo que há, de científico no título sobre câncer e batatas fritas: nada.

Em estado ideal

Há centenas de exemplos desse discurso-malho-de-marketeiro-tucano, que já nada tem de jornalístico, nas páginas 2 do Estadão, da Folha, da Veja, de O Globo, do Jornal do Brasil, do Correio Braziliense e, afinal, nos editoriais de TODOS os grandes jornais e revistas, no Brasil. Há exemplos dessa imprensa-P também nas colunas assinadas e, nos últimos tempos, também nos blogs dos mesmos colunistas e de outros.

Do outro lado dessa argumentação, há (ou, pelo menos, deve-se desejar que AINDA haja) uma outra imprensa. Podemos chamá-la de imprensa-C, para lembrar que essa imprensa só tem existência Conceitual. Dines fala dessa imprensa-C e exige que o presidente pare de massacrá-la. Não se trata de chamá-la de jornalismo romântico, porque, afinal de contas, o jornalismo pode ser romântico e, ao mesmo tempo, ser horrivelmente reacionário; como pode ser romântico e democrático.

A imprensa que Dines defende é alguma coisa como ‘a imprensa em estado ideal’. É muito importante defender essa imprensa, porque, se esquecermos de vez, e para sempre, o que a imprensa pode ser, aí mesmo é que nunca mais, na vida, que teremos imprensa democrática. Não defender essa imprensa ideal é mais ou menos como não defender a beleza, a justiça, a liberdade, a felicidade. Digam o que disserem os sociólogos uspeanos da tucanaria, todos temos de defender esses valores, mesmo que já não interessem a nenhum mercado.

As respostas são perguntas

Mas, na minha opinião, Dines também defende mal o seu argumento. Afinal, se é verdade que os cidadãos brasileiros JAMAIS são ensinados, nem pela universidade nem pelos jornalistas da imprensa-C a verem que há duas imprensas, no Brasil… também é verdade que Dines, sim, sabe que há duas imprensas, no Brasil. Mas Dines não fala em duas; só fala em uma, como se fosse única. E há duas.

Ora! Os leitores-eleitores, em 2005/6, no Brasil, já praticamente NUNCA lêem nenhuma imprensa-C, nos jornais. O que os leitores-eleitores lêem é, sempre, sempre, sempre, a imprensa-P. E disso, aliás, não se precisa de melhor prova do que a opinião dos leitores que contraditaram Dines. Eles reagem como cidadãos-sem-argumento. Reagem como vítimas desarmadas, como interlocutores argumentalmente desamparados. Reagem movidos apenas por algum vago instinto de cidadão, que anseia por melhor democracia, mas não conhece nenhum meio argumental para construí-la, também pela imprensa. Desamparados, os cidadãos partem para uma espécie de esperneio cívico-democrático, que é o que se ouve nas respostas dos leitores.

Não por acaso, quase todas as respostas à matéria de Dines, escritas pelos leitores… são PERGUNTAS.

Mais pela raiz

É onde me parece que o presidente Lula massacre pouco e mal, quando, sim, ele tenta massacrar – em legítima defesa – a imprensa que o massacra. Massacra pouco e mal a imprensa-P, que o massacra, antes de mais nada, porque o presidente não cuida de RESPONDER às muitas perguntas dos cidadãos leitores-consumidores dessa maldita imprensa-P que, sim, nos massacra a todos, no Brasil – e só poupa os Azeredos, os Virgílios, os IFHC.

De grave, no campo argumental, é que, ao massacrar pouco e mal a imprensa que, sim, o massacra golpistamente, o presidente Lula massacra também, no mesmo saco, a imprensa-C. Assim, o presidente Lula abre o caminho para que Dines defenda essa imprensa-C – que é, em si, no plano conceitual, altamente defensável e tem de ser defendida.

Ora… se Dines-cidadão-eleitor fosse eleitor de Lula, então, sim, poder-se-ia esperar que Dines-jornalista ou Dines-cidadão, como eu, cuidasse um pouco mais de explicar melhor as coisas, mais pela raiz do que pela rama. Mas Dines-cidadão-eleitor não é eleitor de Lula… e, então, em nome de defender uma imprensa-C Dines acaba por fazer, exatamente, o que faz a imprensa-P, quer dizer, Dines também massacra Lula e o meu voto.

Atenção aos discursos

Contudo, mesmo nessa operação em que se misturam e confundem os interesses partidários pessoais do jornalista-editor-dono-do-jornal e os conceitos de uma imprensa-C, cujos conceitos são tradicionalmente muito mal discutidos no Brasil, ainda se salva, mesmo assim, no Observatório, parte muito importante de uma imprensa C democrática, que já não existe mais, nem em vestígios, no Brasil pós-tucanaria.

Dines e o seu belo Observatório da Imprensa publicam, em lista farta e longa, muitas das respostas-do-leitor-eleitor massacrado, no Brasil. É algum jornalismo democrático e de democratização, sim. Mas precisamos de muito mais e de muito melhor jornalismo democrático e de democratização.

Afinal de contas, por mais que mudem os nomes, os conceitos, as siglas, os Mesquitas, os Civitas, os Frias, os Marinhos e as batatas fritas, ainda não estamos prestando atenção aos discursos, veículos, slogans, manchetes, campanhas, grana e cantilenas do câncer.

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Lingüista, São Paulo