Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um apelo à inteligência

Lemos, todos os dias, sobre a violência urbana e o crime organizado, notadamente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. As matérias são densas e relatam os horrores e atrocidades cometidas por criminosos organizados. Os editoriais, exaltados, acusam o poder público de inoperância e há articulistas que fazem as duas coisas, além de conclamar os cidadãos para o apoio a medidas repressivas mais eficazes. Uma das propostas que ganha unanimidade entre todas as vozes é a do aprimoramento da inteligência policial. Para todos, faltam investimentos no aprimoramento do serviço de inteligência da polícia.

Há, porém, os que lembram das atrocidades a que é submetida a população pobre. Há também os que referem que o poder público realmente falha, mas por somente estar presente nas comunidades pobres apenas com sua força policial, não oferecendo educação, saúde ou perspectivas de melhoria das condições de vida. E há os que lembram que, assim, mais medidas repressivas só tendem a piorar o quadro.

Não podemos esquecer os simplórios para os quais a solução é exterminar todos os bandidos – e, em 2004, tive informações de fonte confiável de que alguns militares chegaram a esboçar uma operação para o assassinato de um bom número de ‘lideranças do tráfico’ – assim como, na margem oposta, há os que insistem em considerar pessoas que incendeiam pessoas como singelas ‘vítimas da sociedade’. Todos, com certeza, não se oporão ao argumento de que a segurança pública carece de um serviço de inteligência, nem muito menos o autor deste texto. Mas, há algumas ponderações a fazer.

Uma guerra secular

As condições para a formação do chamado banditismo urbano e suas quadrilhas estão dadas e não há qualquer sinal de que sejam minoradas ou refeitas. Isso não vem de agora, ou de uma ou duas décadas atrás, conforme às vezes se tenta dizer. Temos que levar em consideração muito tempo de discriminação e de criação das feras que incendeiam ônibus com gente dentro.

Os jornais falam em ‘guerra’ e, com um pouco de pesquisa e um mínimo de bom senso, podemos entender que há uma guerra posta há pelo menos algumas centenas de anos. Guerra que se acirrou nos últimos cem anos. Não exatamente a guerra de que os jornais falam, que opõe bandidos e ‘cidadãos de bem’, os tais ‘bons’ silenciosos de que tanto se fala. No máximo se fala de um estágio dela.

A guerra original, o conflito que serve hoje de pano de fundo para as atrocidades, é exatamente a dos ‘cidadãos de bem’ contra os pobres. A história do Rio de Janeiro, por exemplo, é ilustrativa e estudá-la pode ser muito útil para entender o porquê de tanto banditismo e tanto desprezo pela vida – tal como o demonstrado pelos ‘terroristas’ cariocas. A adesão ao crime por parte de uma parte dos moradores de favelas e periferias tem lá sua lógica e só um parvo não percebe isso e exige mais repressão. Essas pessoas estão apenas mostrando que aprenderam bem uma determinada lição. Acima de tudo, não são vítimas inocentes.

No entanto, esse é apenas um dos vetores do problema. Não o esgota. Saber que os ‘cidadãos de bem’ ajudaram a alimentar o ódio dos que hoje se tornaram bandidos é fundamental, mas não basta. Como alguns lembram, há pelo menos cem anos, os pobres, principalmente os de pele escura, são tratados como animais e só recebem atenção do Estado através dos cassetetes e das armas da polícia. Devem, para escapar das bordoadas e tiros, ficar quietos, não circular em ‘áreas nobres’ e aceitar os magros vencimentos oferecidos por empresas e casas de família, além de muita humilhação.

Uma boa forma de entender como os ‘bons silenciosos’ tratam essa gente é ver como são as tais ‘dependências de empregada’ dos apartamentos da zona sul carioca, como lembra Hélio Santos: um cubículo no qual mal se pode entrar e que dá vista para o tanque e a máquina de lavar. Essa gente deveria saber qual é o seu lugar. De alguma forma, uma das mensagens transmitidas pelos bandidos – e não ver isso é burrice ou má-fé – é de que esse lugar não mais lhes satisfaz. Mas, isso ainda não é o mais importante.

Outro nome para ‘quadrilha’

Um bom caminho para pensar com radicalidade a questão é assistir ao filme The Corporation, assinado por Mark Achbar, Jennifer Abbott e Joel Bakan, de 2004, e inspirado no livro de Joel Bakan intitulado The Corporation: the pathological pursuit of profit and power, do mesmo ano. Trata-se de uma produção que se dedica a mostrar o óbvio: o que hoje se chama ‘corporação’, ou ‘grande empresa’, no português coloquial, é uma entidade que se assemelha demasiadamente ao que os ‘bons’, quando não estão silenciosos, chamam de ‘quadrilha’.

Entender isso é muito útil para desvendar o problema da violência urbana. Simplesmente porque se pode compreender que o que está acontecendo hoje é a vitória da lógica corporativa, que serviu de inspiração para transformar uma entidade criada para, especificamente, proteger detentos de outros detentos e da truculência de carcereiros, o famigerado Comando Vermelho, em uma lucrativa empresa criminosa. Basta ver, no filme, a utilíssima definição da categoria mórbida psiquiátrica intitulada Distúrbio de Comportamento, vulgo Psicopatia, para esclarecer as coisas e perceber que se enquadrar nessa definição não é apenas apanágio de traficantes ou bandidos diversos.

Em linhas gerais, o psicopata se caracteriza por: a) insensibilidade em relação aos sentimentos de outrem; b) incapacidade de manter relações duradouras; c) insensibilidade em relação à segurança de outras pessoas; d) hábito de mentir e atribuir a outros a responsabilidade por seus maus atos; e) incapacidade de experimentar culpa; f) inaptidão para se conformar a normas sociais e à legalidade. Pois o filme demonstra, de forma direta e simples, o que podemos perceber no ‘mundo real’: a corporação, a empresa, se enquadra, em suas práticas, em todas essas características. E, da mesma forma, os governos que agem conforme seus ditames.

A sociedade das corporações, a sociedade que cada vez mais segue o padrão de comportamento psicopático demonstrado pelas grandes empresas, não pode ser muito diferente do que é. Podemos, por exemplo, perguntar: qual a diferença entre quem dá um tiro ou incendeia um ônibus com gente dentro e quem envenena o ambiente ou organismos, ou quem lesa populações inteiras obtendo favores de governos corruptos? É claro que há diferença. Quem leva o tiro ou é queimado vivo e morre muito mais rápido. Da mesma forma, como lembrou Wright-Mills, a diferença entre o ladrão pobre e o ladrão rico é que aquele exerce seu ofício com violência e obtém ganhos parcos, mas imediatos, enquanto este faz tudo suavemente e a longo prazo, obtendo ganhos bem maiores. Há, assim, uma grande identidade entre o que os jornais chamam de quadrilhas e o que costumamos chamar de corporações, assim como há uma inequívoca semelhança entre o que os psiquiatras chamam de psicopatia e o que alguns chamam ‘mentalidade empresarial’.

Falta inteligência, assim, para descobrir que a sociedade ocidental, cada vez mais dominada pelos interesses das grandes empresas, é uma sociedade que insufla o crime, premia o criminoso e incentiva todo e qualquer mortal que pretenda entrar no seu jogo a descartar qualquer consideração pelo semelhante – tudo em nome do ganho, da vitória, do lucro. Não pode dar noutra coisa… E, convenhamos, a inteligência policial, como a conhecemos, não pode fazer muito nesse caso. A não ser que passe a voltar suas atenções para longe das favelas e periferias. Até quando se vai fingir não saber que o mercado financeiro é um dos maiores interessados no tráfico de drogas, pois esse ‘negócio’ movimenta aproximadamente 500 bilhões de dólares por ano? Adivinhe onde circula boa parte dessa grana?

Apenas seguindo ‘bons exemplos’

Podemos dizer que não há muito como negar esses fatos. Não há como esquecer disso se a intenção for realmente entender a dita ‘violência urbana’. A chamada grande imprensa, por sua suposta posição de poder destacado de interesses diretamente políticos e por seu suposto compromisso como serviço público, deveria ter um papel importante na função de decodificar a complexidade do quadro e permitir a formação de uma consciência cidadã. No entanto, essa posição e esse compromisso são, como dito acima, apenas supostos. A imprensa de maior circulação e, por conseguinte, de maior peso na formação da consciência, é formada e alimentada por grandes empresas. E, assim, não consegue ver, ou não quer ver, que não há saídas viáveis para o grave problema da criminalidade, a não ser que se refaça a lógica predominante em nossa sociedade: a lógica psicopática, a lógica do desrespeito ao outro, a lógica corporativa. E se essa tarefa já seria difícil com a participação da grande imprensa, imagine sem ela.

Infelizmente, tem nos restado a trágica posição de assistir às atrocidades dos bandidos e dos ‘líderes corporativos’ sendo exibida como show nos telejornais. Para sair desse impasse, é fundamental deixar de lado os lugares-comuns e aprofundar a discussão. Não adianta apontar o traficante de drogas das favelas e periferias, ou tais e quais milícias disto ou daquilo, como responsáveis ou culpados pela tragédia. Eles estão apenas seguindo os ‘bons exemplos’ dados por quem ‘se deu bem’ na vida. Mesmo que para ‘se dar bem’ seja necessário lesar seja lá quem quer que seja. Essa é a regra do jogo, o jogo proposto pela mentalidade empresarial e aceito por quase todos nesta sociedade, incluindo os tais ‘cidadãos de bem’ a quem a imprensa exorta à indignação. Falta inteligência, principalmente para descobrir para onde dirigir a indignação.

Uma polícia inteligente, nos mostra gente interada no assunto, como o francês Dominique Monjardet, ou Lawrence Sherman, do Crime Control Institute, dos Estados Unidos, e nosso conterrâneo Luiz Eduardo Soares, seria aquela que caminharia na direção do núcleo da organização criminosa. Utilizando uma metáfora médica, teria como foco atacar ostensivamente o núcleo canceroso do chamado crime organizado, descobrindo os líderes de modo a ter provas consistentes para incriminá-los. Cortado o mal pela raiz, as metástases perderiam força e a atividade criminosa definharia. Que tal levar isso a sério e enviar a Força de Segurança Nacional para endereços mais nobres do que os encontráveis em qualquer favela ou periferia? Fica, aqui, um apelo à inteligência.

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Psicólogo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ