Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um caso de incompetência ou de má-fé?

A aprovação pelo Parlamento de uma nova legislação profissional para os jornalistas brasileiros, atualizando a regulamentação em vigor – o Decreto-Lei 972, datado de 1969 – tem provocado uma grande polêmica, principalmente por parte de alguns meios de comunicação, notadamente os das Organizações Globo e do grupo o Estado de S.Paulo, contrários ao novo texto.


A busca de uma lei mais moderna, que atenda às necessidades profissionais dos jornalistas, bem como a contrariedade do patronato, que sempre foi contra a necessidade de formação universitária para ser jornalista no país, são posturas democráticas e cabíveis dentro do tradicional jogo de pressão das lutas de classes. Entretanto, é importante olhar uma regulamentação profissional não como um escudo para fortalecer uma eventual reserva de mercado profissional, mas sim como instrumento de preservação e de garantia da qualidade do serviço prestado à sociedade.


O Brasil, a exemplo de outros países como a Itália, tem uma tradição de regulamentar o exercício profissional de praticamente todas as profissões, principalmente as de nível superior. Ao estabelecer quais conhecimentos ou formações profissionais um cidadão precisa portar para exercer uma determinada profissão – como a medicina, a advocacia, a engenharia, o jornalismo, a publicidade, a administração – o Estado, por meio dos poderes Legislativo e Executivo, busca assegurar um padrão mínimo de qualidade do serviço que será aportado à sociedade. Lembremo-nos que o acesso à informação é um direito assegurado à sociedade brasileira pela Constituição de 1988 e, portanto, é necessário que esta prestação de serviço seja de qualidade e balizada por critérios legais. Não adiantará fazer casas, atender pacientes, defender cidadãos ou informar as pessoas se os serviços forem precários ou de má qualidade. Pensar que o mercado irá cuidar disso, irá se auto-regulamentar, é ingenuidade – como já vimos em diversas situações (Palace II, erros médicos, advogados envolvidos com o submundo, Escola Base etc.).


Torna-se, então, lugar comum querer tachar de corporativismo pré-histórico a iniciativa dos jornalistas em querer atualizar sua legislação profissional datada de uma época que os jornais ainda eram impressos a base de clichês de chumbo, a TV era em preto e branco, não existia fita de vídeo, foto digital, telefone celular, computador e muito menos a internet.


Esta medida se faz necessária pois novas maneiras de fazer jornalismo surgiram no planeta e, ao contrário do que seria de se esperar, as empresas jornalísticas preferem fazer vista grossa e insistem em contratar não-jornalistas para atuarem nas atividades jornalísticas. É a lei do lucro que prevalece e não à da qualidade informativa. Um bom exemplo é o chamado webjornalismo, no qual se inventou a figura do ‘provedor de conteúdo’ para denominar o redator – que deve ser jornalista – que abastece com notícias tais veículos.


Demonstração cabal


O que me traz a este artigo, contudo, não é a defesa da atualização da legislação profissional, mas a forma como determinados veículos tratam da aprovação da lei pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Existe um volume enorme de desinformação e de inverdades. Os veículos parecem ter dormido no ponto. Seus assessores parlamentares e lobistas não devem ter atentado para a existência do projeto e não conseguiram a tempo pressionar os parlamentares para a retirada ou rejeição da proposta. Ao contrário do que afirma a imprensa, ela não foi aprovada a toque de caixa, nem na calada da noite. Ela estava há anos tramitando de comissão em comissão nas duas Casas do parlamento, enfrentando todas as dificuldades já conhecidas da agilidade e produtividade parlamentar em votar uma lei. Ela é mais antiga do que o projeto que propunha a criação do Conselho Federal dos Jornalistas. Algumas televisões buscam associar esta iniciativa como sendo resposta ao fracasso da outra.


Por questão de honestidade é importante que o leitor saiba que o autor deste artigo tem um dedo de contribuição no projeto de lei que acaba de ser aprovado. Para recapitular rapidamente a história, é bom que se diga que em 1987, no Congresso dos Jornalistas realizado em Goiânia, a categoria aprovou a apresentação de uma nova regulamentação profissional. Na época, passados 20 anos de existência da primeira lei, já se fazia necessária uma atualização legal. O texto pronto foi apresentado pela então deputada Cristina Tavares (PMDB-PE). A parlamentar, que era jornalista, morreu de câncer anos mais tarde, sem ver a lei aprovada.


Na década de 1990, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) decidiu adotar uma nova tática. Dividiu o projeto de Cristina Tavares em vários pequenos projetos. Este trabalho foi realizado por uma comissão formada pelos então presidentes dos Sindicatos dos Jornalistas de São Paulo, Everaldo Gouveia, de Goiás, Luis Spada, e do Distrito Federal, o signatário deste texto.


O primeiro projeto – filhote do projetão – aprovado foi o que eliminava a exigência de ser brasileiro, nato ou naturalizado para exercer a profissão de jornalista no Brasil, e transferia à Fenaj a competência de emitir o registro profissional de jornalista. Desde 1938, durante o governo de Getúlio Vargas, esta atribuição é responsabilidade exclusiva do Estado, na figura do Ministério do Trabalho. Foi Vargas quem assinou o decreto com a primeira regulamentação profissional dos jornalistas. Foi Vargas também quem criou o curso universitário de Jornalismo. Já na época os empresários da comunicação eram contra as duas idéias.


Com o projeto, a categoria dava então uma demonstração cabal de não ser este ente corporativista, atrasado, de que é acusada pelo patronato, pois eliminava a reserva de mercado a brasileiros, permitindo que profissionais de outras nacionalidades também exercessem suas atividades em território nacional. Note-se que poucas profissões permitem isso no Brasil e no mundo (ver conflitos entre médicos brasileiros e cubanos e dentistas portugueses e brasileiros, por exemplo).


Campo ideológico


Os jornalistas buscavam também retirar da mão do governo o poder de se intrometer em um ponto crucial da liberdade de expressão e do direito ao trabalho, que é a capacidade de conceder ou cassar registros profissionais. Com regras claras e definidas em lei, não há necessidade de o Estado ser o responsável por tal tarefa, que nem sempre realizou com qualidade e honestidade.


Nos anos 1990, uma revisão dos registros profissionais concedidos pelas Delegacias Regionais do Ministério do Trabalho acusou a existência de fraudes em um universo superior a 25%. Ou seja, de cada quatro brasileiros portadores da carteira de jornalista, um a tinha obtido de forma irregular. Políticos, religiosos, empresários e modelos, entre tantos outros, foram os principais agraciados com registros profissionais falsos emitidos pelo Estado. Apesar de tudo isto, o governo de Fernando Henrique Cardoso e o então ministro do Trabalho Francisco Dornelles (que suspendeu a conclusão das revisões dos registros profissionais sem cancelar os falsos identificados no Rio de Janeiro) decidiram vetar o projeto.


O segundo projeto chega ao Planalto para a sanção presidencial. Antes disso, o texto foi alvo de debates e audiências públicas no Congresso – pelo menos uma delas com a cobertura da TV Câmara – sem que a imprensa tenha dado notícia sobre a tramitação. Ela não informou a sociedade sobre o que acontecia. Agora, numa demonstração de desespero, jornais e televisões fazem pressão para que Lula vete o projeto. Neste processo de pressão e de jogar a opinião pública contra as entidades representativas dos jornalistas, por incompetência ou má fé – incompetência no sentido de estar desinformado – várias informações erradas, falsas estão sendo transmitidas à opinião pública. Vejamos abaixo alguns exemplos:


** Noticiosos afirmaram que a lei vai exigir diploma de jornalismo para a função de ‘Locutor’. Não é verdade. Embora no início da década de 1960 a função de locutor fosse legalmente classificada de jornalística, por lei, desde a existência da regulamentação profissional de radialistas esta é uma função desta carreira co-irmã da comunicação social e que exige, igualmente, pré-requisitos para atuar como tal.


** Dizem que a nova lei cria a função de ‘Comentarista’ como privativa de jornalistas diplomados. Outra inverdade. A função de cronista ou comentarista já existe há décadas e é privativa de jornalista desde 17 de outubro de 1969, quando da edição do Decreto-Lei 972. Não é necessário perder muito tempo procurando na legislação que vai fazer 40 anos. Está lá, escrito bem no início, no artigo 2º, alínea B. Basta querer ler e se informar antes de informar a sociedade.


** Alegam que o futebol ficará desprovido dos comentários de ex-jogadores, como Pelé, Casagrande, Falcão etc. Outra inverdade. Ou será má-fé? Estes profissionais, como qualquer outro especialista em qualquer temática, não fazem, e nunca fizeram, jus à condição de jornalista profissional, mas tão-somente a de colaborador. É assim há quase 40 anos, pela legislação citada anteriormente, e nada muda na nova lei. Além disso, para evitar confusões, o registro de colaborador, pela portaria MTb nº 104, 12/01/1996, não deve ser nem anotado em carteira profissional. Evita-se, assim, a leitura equivocada de que se trata de registro de jornalista. Antes de 1996, muita gente tentava ser jornalista por meio da função de colaborador. Já houve bispo evangélico se valendo desta condição para tentar ser enquadrado como jornalista.


Os colaboradores continuarão a poder comentar no campo técnico científico ou cultural que dominam. O que a lei torna mais claro é que eles não podem realizar tarefas nitidamente jornalísticas, como fazer reportagens, entrevistas, editar etc. Implanta também a necessidade de os interessados comprovarem que são efetivamente experts na área sobre a qual desejam escrever, analisar ou comentar. Esta medida já constava da resolução normativa nº 24, da mesma portaria citada. Expressar isso em lei, que tem caráter mais permanente, é bom para a sociedade pois evita a presença de espertalhões.


Desta forma, ao contrário do que afirmaram alguns jornalistas e alguns veículos, as colunas de personalidades públicas como Tostão, Nilton Santos, Nelson Piquet, Jarbas Passarinho, Antônio Ermírio de Moraes, Delfim Neto – estranho, não tem um João Pedro Stédile, um Dom Pedro Casaldaglia, só um campo ideológico obtém espaço nas colunas de comentários da mídia brasileira – continuarão a ser lidas normalmente.


Fraudes nos registros


Neste jornalismo desinformador, também foi dito que passará a se exigir que os professores de disciplinas de jornalismo sejam jornalistas. Isso já acontece desde 1969 e é natural que um jornalista ensine técnicas de jornalismo. Para as demais disciplinas, tais como sociologia, história, direito etc. não há nem se pretende exigir que o professor seja um jornalista. Também ignoraram que já existia na lei a atividade de arquivista pesquisador.


Além de algumas mudanças de nomenclaturas, para se adequarem ao vernáculo do mercado – por exemplo, a lei antiga falava na função de apurador de notícias, e a nova usa a expressão produtor – duas grandes novidades se referem ao segmento do jornalismo institucional e aos profissionais de imagem. Em relação aos primeiros, a lei institui uma função que, embora exercida há anos, não existia no papel. É a função de assessor de imprensa, aquele profissional que atua na produção de jornais, revistas e até de rádio e TV em favor de uma empresa ou instituição não jornalística e que também faz a ponte entre a fonte e à imprensa tradicional. Em 2004, segundo dados do Ministério do Trabalho, 60% dos jornalistas contratados pela iniciativa privada atuavam neste segmento.


Não há como ignorar uma realidade já praticada pelo mercado e reconhecida pela Justiça do Trabalho, bem como pelo próprio Estado que realiza concursos para selecionar jornalistas que atuarão em suas estruturas de comunicação institucional. Mas esses dados, ao alcance de qualquer repórter, foram omitidos pela imprensa na sua campanha contra a futura lei.


Quanto aos profissionais de imagem – diagramadores, repórteres fotográficos e cinematográficos – o projeto estabelece que estes jornalistas, a exemplo dos colegas de texto, deverão também ter uma formação universitária. A medida, além de atender uma reivindicação existente há cerca de uma década – foi aprovada pelo Congresso dos Jornalistas do Rio de Janeiro em 1998 – busca a melhoria da qualidade profissional e também tenta fechar uma porta às fraudes na concessão de registros profissionais.


Ao longo dos anos, verificou-se que os registros profissionais dessas funções foram intensamente utilizados para criar o chamado ‘jeitinho’ de se transformar em jornalista, sem passar pelos bancos universitários. Várias fraudes foram encontradas na concessão deste tipo de registro, uma vez que a lei não exigia nem que a pessoa demonstrasse conhecer as técnicas do jornalismo de imagem.


Ponto final


Além de se fechar uma porta à fraude e abrir outra à qualidade profissional, a mudança na legislação se enquadra num padrão de produção jornalística instituído pelas próprias empresas, nas quais vigora uma convergência de tarefas. Para o mercado, o jornalista da imprensa escrita tem que ser polivalente – ele redige, revisa, diagrama e pagina sua matéria, faz titulação e em muitos casos produz as fotos.


Na mídia audiovisual não é diferente: há emissoras em que o repórter de TV filma e entrevista ao mesmo tempo, e na rádio joga na posição de operador de áudio, locutor, comentarista, redator etc. Portanto, se o mercado exige um profissional polivalente a formação deverá ser comum a todos. E para isso é importante uma adaptação dos programas das faculdades, ampliando a carga curricular já existente de fotografia e cinejornalismo.


Atualmente, vários repórteres fotográficos e cinematográficos são jornalistas de formação universitária e profissionais de imagens por opção. E na maioria dos casos são profissionais de excelente qualidade que despontam no cenário nacional. Atuam para os veículos mais importantes do país. Numa era em que a imagem ganha espaço cada vez maior, em alguns casos superando o próprio texto, é importante que a sociedade conte com imagens registradas por profissionais técnica e eticamente bem capacitados. Não podemos nos sujeitar aos parparazzi que tanto se proliferam na Inglaterra e em outras paragens, fazendo um jornalismo barato, marrom, de sensacionalismo.


Vale dizer que essas regras valerão apenas para aqueles que ainda irão entrar no mercado e que todos os que nele já estão terão seus direitos preservados. Isso também tem sido minimizado pela cobertura até agora divulgada.


Não estou querendo justificar a nova legislação, embora a considere justa e necessária. Questiono por que a imprensa e alguns profissionais mentem ao cobrir este tema. Por que a mídia não faz o debate sério sobre a necessidade ou não de se qualificar quem informa à sociedade? Por que mentiras e desinformações são transmitidas tão tranquilamente? Será que sem mentir a sociedade não se sensibilizará? Será que mentindo a opinião pública irá pressionar Lula para vetar a lei? Ou será que o problema é estrutural, existe falta de tempo para a apuração?


Será desinformação crônica dos nossos profissionais que mal conhecem a lei que regula a própria profissão? Será que estão ali na frente da tela, nas páginas de jornais, apenas como paus-mandados das empresas, sem direito a realizar uma cobertura digna e veraz? Será que é incompetência, ou será má-fé? E, pior: será que isso acontece com os demais temas tratados pela imprensa, como eleições, economia, relações internacionais? Não tenho respostas, gostaria de tê-las.


Tenho, porém, uma suspeita. Durante anos o empresariado do jornalismo tentou alegar que a regulamentação profissional dos jornalistas é anticonstitucional, pois teria sido editada por Decreto-Lei antes da Constituição de 1988. A sanção desse projeto dará um ponto final neste questionamento, pois a nova lei, ao reafirmar a necessidade da formação universitária, o fez sob as regras da Constituição e na forma mais democrática possível, que é a votação no Congresso Nacional.


Se o presidente Lula sancionar a lei a Justiça irá ganhar tempo, pois vários processos serão arquivados ou considerados prejudicados.

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Jornalista, mestre em Comunicação Social e doutorando em Ciências da Informação e Comunicação na Universidade de Rennes (França); foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do DF e vice-presidente da Fenaj, da Federação Latino-americana de Jornalistas (Felap) e da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ); integrou a Comissão Nacional de Revisão dos Registros de Jornalistas Profissionais, criada pelo governo federal em 14/06/1995