Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um caso de renúncia à inteligência

A imprensa brasileira sempre me surpreenderá: uma das melhores do mundo em rapidez informativa, diversa e complexa, política ou ideologicamente, como este país continente, ela também é capaz de abrigar o que há de melhor e o que há de pior, em seu próprio seio e na sociedade brasileira, em termos de reflexão isenta a partir da matéria-prima da imprensa: os fatos.

Refiro-me ao caso certamente escandaloso dos jornalistas estrangeiros expulsos aos magotes da ilha caribenha quando tentavam entrar para desempenhar o que parece ser o seu ofício: cobrir fatos, nada mais do que fatos, neste caso, o súbito agravamento do estado do ditador supremo, Don Fidel. Alguns jornais até chegaram a relatar essas expulsões constrangedoras para si mesmos e seus correspondentes, despachados às pressas para a ilha, com vistos de turistas, sem tempo para aguardar burocraticamente que as autoridades cubanas concedessem o visto apropriado. Não me lembro, contudo, de algum jornal ter elaborado sobre esse mesmo tema, que virou, manifestamente, matéria de jornal, uma notícia em si – merecendo portanto que, ao lado dos fatos, se fizesse uma análise dos mesmos.

Isto se deve, provavelmente, à natureza especialíssima das relações entre o Brasil e Cuba, ou entre Fidel e os jornalistas, relações esquizofrênicas, para dizer o mínimo, e que motivam estas minhas reflexões. As relações efetivas entre Cuba e Fidel Castro, de um lado, e o Brasil e sua imprensa, de outro, tomados tanto como países, como sociedades, como um líder político e enquanto formadores de opinião, essas relações sempre foram, ao mesmo tempo, esporádicas e intensas. Esporádicas, obviamente, em vista dos reduzidos contatos ocorridos no plano oficial ao longo do último meio século: contam-se nos dedos de uma só mão as viagens e visitas recíprocas. E, a despeito de um intenso ‘turismo político’ ao longo desse período, os contatos entre jornalistas de ambos os lados também podem ser classificados de esporádicos.

Contribuição marginal

Mas essas relações são especialmente intensas, e elas sempre o foram, no plano puramente ‘informativo’ e ‘opinativo’, tendo em vista que a presença de Fidel e de Cuba na imprensa e nos meios intelectuais do Brasil tem sido, ao longo do tempo, propriamente avassaladora, assumindo um ‘volume’ absolutamente desproporcional à real importância de um e de outro para a vida prática do Brasil e a de sua sociedade. Pergunto: que importância prática têm a economia, a política e a sociedade cubana para seus exatos correspondentes neste país, que contempla com tanta intensidade a ilha caribenha desde meio século? Se alguém souber me dar uma resposta inteligente a esta pergunta, apontando exatamente a elevada contribuição da ilha e de seu comandante para nossa vida diária, leva um charuto cubano de presente.

Digo isto porque fiquei mais uma vez surpreendido com o comportamento da imprensa brasileira em relação ao simples fato de que os seus jornalistas foram impedidos de trabalhar no momento mais crucial do que representa sua profissão: o levantamento dos fatos, para depois sustentar análises e reflexões. Talvez esse comportamento possa ser resumido numa única expressão: renúncia da inteligência.

Este é provavelmente o sentido que atribuo à atitude beata, ou complacente, assumida por grande parte dos jornalistas de opinião e pela imensa maioria dos chamados ‘intelectuais’ brasileiros em face de uma situação que constitui um dos casos mais notórios de que se tenha notícia de ditadura personalista. De fato, as matérias sobre Cuba que se lêem nos meios jornalísticos e acadêmicos do Brasil são tão complacentes em sua forma – uma vez que tendem sempre a assinalar o embargo norte-americano como fonte dos males passados e presentes do pequeno país caribenho – quanto superficiais em conteúdo, já que carentes de visão crítica naquilo que seu personagem principal mais encarna: o ditador absoluto de uma ilha convertida praticamente em sua ‘fazenda’ pessoal nos últimos 47 anos.

Conhece-se muito pouco, no Brasil, das duras realidades da vida cotidiana em Cuba, assim como das duras materialidades do castrismo enquanto sistema político dominado pela figura ímpar do ditador cubano. Na verdade, essas realidades nos chegam envolvidas numa aura de generosidade idealista e de encantamento romântico, tal como propagandeadas pelos aliados do regime, que estão longe de refletir as agruras efetivas do povo cubano. A literatura econômica e política de qualidade sobre Cuba, produzida em sua maior parte nas universidades americanas, nunca foi traduzida e publicada no Brasil.

Os jornais até chegam a cobrir algumas obras de cubanos dissidentes, mas não me lembro de que eles tenham feito o mesmo em relação ao volume significativo de análises de boa qualidade que emerge das universidades americanas. O que aqui se teve de mais conhecido em matérias de ‘análise’ foi, justamente, o livro de um conhecido jornalista profissional, convertido em ‘cronista’ de personalidades, chamado A Ilha, que conheceu inúmeras edições. Seu sucesso foi estrondoso, tendo sido aclamado (preciso dizer?) de maneira complacente pelos habituais formadores de opinião, que são os seus colegas jornalistas.

A contribuição efetiva desse livro para o conhecimento da real situação na ilha foi pouco menos que marginal, tendo em vista a falta de isenção de seu autor em considerar o ponto de vista do cubano comum. Ele ainda se orgulha de ser amigo do ditador, estando pronto para viajar imediatamente para a ilha, nesta hora de angústias, para prestar-lhe as homenagens do momento, se nisso não fosse impedido pelas próprias autoridades cubanas: patético, não é mesmo?

Fonte única

Os intelectuais progressistas do Brasil, aqui incluídos os jornalistas de opinião, sempre prontos a veicular o seu horror em face das operações de guerra de Israel ou dos EUA no Oriente Médio, ou a manifestar sua absoluta desconformidade em relação aos prisioneiros ilegais da base americana de Guantanamo, têm estado surpreendentemente silenciosos em face dos abusos recentemente perpetrados pelas autoridades cubanas em face das tentativas de seus colegas repórteres de simplesmente exercerem o seu ofício. Seria mais um caso de simples omissão cúmplice dos comentários de ocasião ou de uma nova e inexplicável renúncia à inteligência?

Esses intelectuais benevolentes já tinham estado particularmente silentes quando, há mais de dois anos, o regime ditatorial cubano condenou a duras penas de prisão dezenas de dissidentes políticos e fuzilou, depois de rápido julgamento, os autores de um seqüestro de um barco que estavam apenas tentando fugir da ilha. Essas decisões não resultaram de uma tramitação normal do sistema judiciário cubano, mas derivaram diretamente da vontade pessoal do líder político cubano, como enfatizaram diversos observadores independentes na ocasião.

Difícil de explicar a pouca atenção que se dá na imprensa brasileira a fatos como esse, que causariam horror se fossem cometidos em outros países, se não fosse pela absoluta complacência com que são aqui recebidas notícias e fatos relativos à vida política na ilha. No sentido contrário, ‘explicações’ de alguns intelectuais de aluguel foram veiculadas na imprensa, sempre livre para acolher todo tipo de bobagem impressa, tentando justificar o injustificável: Cuba precisava se proteger dos ‘inimigos’ do regime, dos que se colocam a serviço do imperialismo, dos que querem destruir as ‘conquistas do povo’. Seria novamente patético se não fosse trágico.

Normalmente se aceita, entre esses jornalistas de ‘opinião’ e entre os acadêmicos que se travestem de tal, que os cubanos possam viver em ‘regime econômico especial’ – isto é, caracterizado por privações constantes – e privados de liberdade política, apenas porque a ilha sofreria, supostamente, as dificuldades de uma situação de ‘embargo’ imposta pelo imperialismo dos EUA (o que constitui, obviamente, um dos muitos equívocos cometidos por aquele país, mas isso não vem ao caso agora). O que esse suposto embargo representa como justificativa ilegítima do ponto de vista das liberdades políticas em Cuba não é jamais posto em questão na imprensa brasileira, uma vez que não haveria qualquer elemento lógico que o pudesse sustentar racionalmente.

O mesmo raciocínio poderia ser aplicado ao problema econômico: Cuba pode comerciar com quaisquer outros países, o país é membro original do GATT e da OMC e o embargo americano afeta marginalmente alguns fluxos comerciais e financeiros da ilha, sem impedir absolutamente sua inserção nos mercados globais de mercadorias e serviços.

Os problemas econômicos cubanos derivam da ineficiência geral do seu sistema econômico, estatalmente centralizado, não do embargo americano. Seus problemas políticos derivam única e exclusivamente da vontade de seu líder em manter um regime de partido único, administrado pessoalmente por ele como única fonte possível de legitimidade política e institucional. O anacronismo e a falência iminente de um e outro sistema, em pleno século 21, são evidentes, mas esses aspectos não aparecem nas análises que se lêem na imprensa do Brasil sobre os problemas da ilha.

Esperança de leitor

Agora que a pessoa do ditador caminha para o seu ocaso, sua figura não mais deveria comandar uma espécie de paralisia mental nos meios jornalísticos e entre os analistas acadêmicos em relação aos principais problemas da ilha. O primeiro ponto a ser refletido por eles, numa situação de transição da antiga liderança carismática para um sucessor designado, seria justamente este: por que regimes comunistas, supostamente ditaduras do proletariado, deveriam ter um tipo de sucessão de tipo dinástico, com arranjos familiares sendo conduzidos em prejuízo de uma consulta efetiva ao conjunto da população?

Curiosamente, os dois únicos países que conheceram esse tipo de situação, nos últimos dez anos, foram as duas únicas ditaduras comunistas sobreviventes da era da Guerra Fria: a Coréia do Norte e Cuba. São os dois únicos países onde a falta de liberdade política e econômica é total, uma vez que mesmo na China e no Vietnã, ainda formalmente socialistas, as franquias econômicas e os direitos políticos têm sido ampliados de forma significativa nos últimos anos.

O desaparecimento do ditador cubano poderia suscitar um tipo de reflexão que raramente se colocou no Brasil: sobre a natureza essencial do regime cubano e os males que daí derivam para a imensa maioria da população da ilha. Aqueles que se escudam numa suposta excelência do sistema cubano de saúde ou nas supostas maravilhas de seu sistema educacional provavelmente nunca leram análises isentas sobre o funcionamento real desses dois sistemas, ou sobre as condições efetivas de seu fornecimento, preferindo ater-se à propaganda feita pelo próprio regime em torno desses dois únicos bastiões do que resta de credibilidade social.

O mais provável é que o desconhecimento da real situação na ilha continue marcando as análises dos formadores de opinião no Brasil, a despeito das inúmeras fontes americanas, isentas, que estão desde muito disponíveis ao freqüentador da internet. Mas o desaparecimento do ditador poderá, pelo menos, retirar do caminho um obstáculo mental à elaboração de análises mais acuradas e fiáveis sobre a difícil situação da ilha. A inteligência analítica não terá mais porque ficar toldada pela figura carismática de um líder político que já teve seu momento de glória na história e que, desde muitos anos, tornou-se, simplesmente, um ditador de literatura, como esses patriarcas de eras passadas que teimam em subsistir no presente. Seria simplesmente patético, se não fosse trágico para a população cubana.

Esta é, pelo menos, a esperança de um leitor habitual de matérias da imprensa sobre as realidades cubanas.

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Diplomata e doutor em ciências sociais; www.pralmeida.org