Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um grau além da violência

A propósito da comoção – nacional, pode-se afirmar – causada pelo bárbaro assassinato de João Hélio, de 6 anos, um pequeno editorial de O Globo (10/2) levanta um ponto importante, ao salientar que a questão já não é apenas de segurança, policiamento, narcotráfico, disputa entre quadrilhas, ação das milícias. Nem sequer de mudança na legislação, com vistas ao fim da impunidade. O problema, diz o jornal, é tanto do Estado como da sociedade: ‘Requer conscientização, mobilização e a participação de todos, sempre pelas vias legais.’

Um outro modo de colocar a questão, mas também deixando transparecer a impressão de que algo nesse crime desborda a ação do Estado, partiu da reação da presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Ellen Gracie: ‘É inimaginável, é inconcebível.’ Pouco tempo atrás, depois de ser assaltada por bandidos na Linha Vermelha, a ministra fora bastante contida em suas declarações, mas no episódio da morte de João Hélio deixou patentes o assombro e a indignação. Inimaginável e inconcebível: o prefixo negativo (in) nos adjetivos aponta, como o editorial jornalístico, para um ponto cego ou irrepresentável no atual estágio da violência no Rio de Janeiro, em São Paulo e outras metrópoles.

Uma ‘cegueira’ paradoxal, por ser objeto de muita visibilidade, já que se sucedem de forma crescente, aos olhos de todos, os episódios de passageiros queimados vivos em ônibus incendiados por marginais, os fuzilamentos gratuitos de autoridades e cidadãos apanhados aleatoriamente e até um toque a mais de crueldade em crimes com fundo passional. Só que olhar ou informar-se não significa ‘ver’, no sentido de compreender razoavelmente o fenômeno. Daí, o ponto cego, o inconcebível ou o irrepresentável no acontecimento.

Estágio epidêmico da violência

Talvez traga alguma luz para a questão o entendimento da diferença entre a lei e a regra. Não há estado de direito sem lei, mas esta é sempre uma abstração, uma forma vazia, à qual temos de nos conformar, mesmo que a desconheçamos ou não percebamos claramente o seu alcance. É o drama do personagem de Kafka em O Processo: a lei o aniquila, sem que ela a conheça, nem saiba exatamente o porquê. A regra, não – é algo de que necessariamente partilhamos e conhecemos, como num jogo de cartas, ou num jogo qualquer. A lei é social, a regra é comunitária.

Ora, não obedecemos à lei simplesmente por sua força socialmente coercitiva, e sim, porque partilhamos comunitariamente da regra segundo a qual não se deve fazer isto ou aquilo, conforme previsto na legislação. Mas a regra começa se desgastar quando passamos a dela duvidar. É o que pode acontecer quando a lei se descola excessivamente da realidade (por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente), quando um aparelho de Estado é fraco em sua tarefa de investigação dos delitos (por exemplo, a polícia) ou na aplicação da legislação existente (caso do Poder Judiciário), ou quando o sistema punitivo como um todo é inqualificável. O desgaste é ainda maior quando a moralidade social é arrasada pelo tsunami de corrupção e escândalos por parte de legisladores e homens públicos. É que, assim, aos poucos, se deixa de divisar qualquer sentido na regra.

Quem acompanha detidamente os pequenos detalhes do episódio do menino João Hélio não pode ter deixado de notar que tanto a família de um dos assassinos quanto a família da vítima, guardadas as prováveis diferenças de renda ou classe social, são bem constituídas. Os termos em que o pai e a mãe do assassino vazaram a surpresa e a dor com a brutalidade do filho podem ser diversos na intensidade da perda, mas não destoam do tom de comoção dos pais de João Hélio em seu clamor por justiça. É verdade que a quase totalidade de menores infratores apresenta sérios problemas familiares. Mas, no episódio em questão, parece reservar-se à rua, à dimensão física do espaço público, a suspeita de que ali se aprendem e se desenrolam as peripécias do inqualificável: o desemprego, a saída prematura da escola, o consumo de drogas, o efêmero poder da posse de armas, a falta dos horizontes humanos tradicionalmente esboçados pela partilha de uma regra.

É no buraco cavado por essa falta que penetram tanto a droga quanto os riscos do inimaginável ou do inconcebível na execução do ato criminoso. Não mais a violência pura e simples – aquela que, embora socialmente insuportável, ainda se define por uma finalidade qualquer. Já fazemos a experiência de um grau além da violência. Os queimados vivos, os fuzilados e a imolação de João Hélio nos introduzem na dimensão do inumano e do cruel, em que o ódio se mostra como o estágio epidêmico e incurável da violência. Hobbes se espantaria: não se trata mais do ‘homem como lobo do homem’, mas de lobos sem outra perspectiva, além da matilha.

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Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro