Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um mar de zeros

Utilizando uma expressão contundente do professor e poeta Luiz Cláudio Pimentel, 10% do Produto Interno Bruto (PIB), como promessa de investimento na educação brasileira, correm o sério risco de virar apenas um tedioso “mar de zeros”. O jornalista e escritor Ruy Castro, no artigo “Falou, mas não disse” (Folha de S.Paulo, de 04/07/2015), com pesar, destaca: “Há meses, Dilma anunciou o programa ‘Brasil: Pátria Educadora’. Ato contínuo, decepou 31% do orçamento do MEC (o maior corte entre todos os ministérios), representando R$ 7 bilhões a menos em circulação no setor. Tal medida deixou de tanga professores, alunos, bolsistas, funcionários das universidades, terceirizados e fornecedores, além de apunhalar o setor editorial com a queda radical na compra de livros este ano e calote nas compras do ano passado.”

A crise educacional, estruturalmente falando, é velha e arquitetada propositadamente por agiotas travestidos de gestores. O sociólogo e professor Florestan Fernandes, com lucidez e perspicácia, já desenhava, em O desafio educacional (1989), a conjuntura depreciativa que foi minando a educação brasileira: “Sob a capa do ‘planejamento educacional’, da ‘administração racional’ e da ‘privatização democrática’, assistiu-se a uma pavorosa destruição do sistema oficial de ensino, à introdução de técnicas verticalistas de imposição de decisões e à fascistização dos procedimentos de atribuição e execução dos papeis sociais nas instituições educacionais. Ao mesmo tempo, provoca-se a implosão quantitativa de todo o sistema de ensino, para desorientar os educadores, os estudantes e os grupos de intelectuais críticos, que poderiam desmascarar o que ocorria.”

Desalentador ler a mesma coisa, de forma politicamente correta, no livro recente chamado Gestão tecnológica em foco (2005), organizado por Douglas A. Sakumoto: “O modelo de aprendizagem que a atualidade propõe tem sua motivação fundada em mais um dos anseios do homem pós-moderno, que busca, gradualmente, romper com os modelos do passado, libertando-se, de maneira específica, do ‘cordão umbilical’ que os liga aos modelos da chamada Era Industrial. O propósito é buscar novos padrões referenciais de gestão que estejam mais próximos das atuais demandas sociais e necessidades do mercado.” Prosseguimos com o realismo árido que nos assola: “No processo de formação do indivíduo, a hierarquia disciplinar tem sido uma constante, desde o seu nascimento, passando pela sua formação acadêmica e profissional. As organizações, por sua vez, passam a se reproduzir a partir desse referencial, criando regras disciplinares, cujo objetivo tem, na centralidade do poder, o condicionamento das atitudes e ações. É a partir dos métodos convencionais, perpetuados por gerações, que se ‘aprende’ a pensar; e estes métodos são adotados por todas as instituições que de algum modo participam da formação do indivíduo, na contemporaneidade: a família, a escola, o governo, a empresa, entre outras. Ou seja, os parâmetros sob os quais parte da sociedade global está sendo formada têm, como paradigma, os padrões lineares e hierárquicos.”

O verbo e a carne

Hegemonicamente, a universidade ainda tem alergia ao povo e escora-se no discurso da meritocracia para fazer a cabeça dos seus eleitos. A fórmula é antiga e remonta, pelo menos, à concepção de ensino superior defendida pelo educador checo Jan Amos Comenius no século 17, qual seja: “A escola universitária constitui o apanágio da educação e, no entender de Comenius, deve ser reservada apenas para os alunos mais capacitados, os quais realizarão estudos verdadeiramente universais, a fim de adquirirem sólida erudição ao lado da especialização escolhida.” Mais informações a respeito, recomenda-se a leitura de Comenius: a construção da pedagogia (1999), escrito por Sergio Carlos Covello. A universidade, concebida desta forma, não passa, portanto, de uma área VIP, com gente embromando, ao invés de pensar e agir para a promoção do coletivo melhorado. Temos as ilhas de excelência, contudo o continente tende ao predomínio desértico. O escritor e jornalista Lima Barreto sugeriu projeto político-pedagógico avançadíssimo, na fabulosa crônica “A instrução pública” (Correio da Noite, de 11/03/1915):

“A instrução superior não devia ter seriação alguma. O governo subvencionaria lentes, ajudantes, laboratórios etc., sem prometer, ao fim do curso, que o estudante seria isto ou aquilo: bacharel ou dentista; engenheiro ou médico. O estudante faria mesmo a escolha das matérias que precisasse, para exercer tal ou qual profissão. Hoje, as profissões liberais se entrelaçam de tal modo e se dividem de tal forma, que prender uma cabeça em um curso é obrigá-la a estudar o que não precisa e não aprender o que precisa aprender. No mais, a mais livre concorrência…”

Infelizmente, o pacto da mediocridade falou mais alto. As centrais de adestramento estudantil vêm colaborando historicamente para a perpetuação de privilégios educacionais. Anísio Teixeira utopicamente chegou a proclamar que o Estado democrático é um “Estado educador” – fato que não se concretizou em nenhuma parte do mundo. Confesso que fiquei emocionado com as palavras da presidenta da República, Dilma Rousseff, no discurso de posse: “Gostaria de anunciar agora o novo lema do meu governo. Ele é simples, é direto e é mobilizador. Reflete com clareza qual será a nossa grande prioridade e sinaliza para qual setor deve convergir o esforço de todas as áreas do governo. Nosso lema será: ‘Brasil, Pátria Educadora!’ Trata-se de lema com duplo significado. Ao bradarmos ‘Brasil, Pátria Educadora!’, estamos dizendo que a educação será a prioridade das prioridades, mas também que devemos buscar, em todas as ações do governo, um sentido formador, uma prática cidadã, um compromisso de ética e um sentimento republicano.” Acontece que o verbo só faz milagre quando se torna carne.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários