Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um quadro extraordinário

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, foi muito feliz em entrevista na Folha de S.Paulo de segunda-feira (30/5). Expressou de forma lapidar o cinismo que une altas esferas do país em face do caso Palocci:

O que o senhor acha da consultoria do ministro Antônio Palocci?

O Palocci é um quadro extraordinário. É sério. Me parece que ele não cometeu nenhuma ilegalidade. Falamos ao telefone, senti ele muito tranquilo. Dei a minha solidariedade e tocamos a vida. Tem sido importante para a presidenta Dilma. É querido no setor empresarial, no Congresso Nacional. Ele não deveria divulgar a lista de clientes que teve? É uma decisão de moto próprio. Não posso me manifestar” [grifo nosso].

A jornalista Mônica Bergamo não se deu por vencida. Nem Cabral Filho:

O senhor viu com naturalidade pessoa-chave na campanha da presidente Dilma dar consultoria a empresários e amealhar R$20 milhões?

Ele não cometeu nenhuma ilegalidade, tá certo? Sob esse aspecto…

E o aspecto moral?

Não me peça para tratar de um assunto sobre o qual eu não tenho conhecimento mais profundo. Mas eu tenho o maior respeito por ele, acho Palocci um gestor brasileiro extraordinário.

Ele será um ministro mais fraco a partir de agora?

Olha, não sou comentarista político. Tenho respeito por ele, é um gestor extraordinário que poderá contribuir muito para o Brasil.”

Uma colheita de 50 cargos

As três maiores revistas, cumprindo o mesmo script da semana anterior, saíram com matérias mornas, que não acrescentaram quase nada ao enredo.

A Veja revelou que a residência paulistana de Palocci é um apartamento maior do que o famoso dos Jardins, comprado por R$ 6,6 milhões em duas parcelas e vazio. No que está habitado, ele paga aluguel. Mais condomínio e IPTU, a despesa mensal chegaria a R$ 21.900, “o equivalente a 83% do salário de ministro”.

A Época pôs em destaque a breve assunção do comando do governo pelo ex-presidente Lula. E seu subproduto mais notável: “O PMDB espera sair do almoço com Dilma com mais 50 cargos para seus integrantes sem mandato”.

Para o professor de filosofia da Unicamp Marcos Nobre, entrevistado pelo Valor (30/5), a intervenção de Lula “é um dos grandes absurdos do momento político brasileiro. Ele obriga a Dilma a sair a público para falar a favor do seu ministro, mesmo que em termos muito genéricos. Isso só ajuda a aumentar o estado de confusão da política brasileira”.

A IstoÉ recapitulou sem adjetivos as suspeitas que atormentam Palocci e fez um retrato político certeiro:

“Já alvo de investigação do Ministério Público sobre o seu enriquecimento, o ministro da Casa Civil segue as orientações do ex-presidente Lula e dá sinais de que, se sobreviver à crise, irá mudar a forma de se relacionar com o Congresso e os aliados”.

O verdadeiro alvo

Todo mundo no Olimpo ficaria aliviado, menos os petistas que perderam posições. A CartaCapital espelha a vontade de setores governistas de se livrar do chefe da Casa Civil –essa vontade é o único argumento válido para defender sua permanência, se houver algum: “O purgatório de Dilma –A cada dia cresce o Custo Palocci”.

Sobre o “fogo amigo”, Marcos Nobre ofereceu na entrevista ao Valor a seguinte argumentação:

“O Lula ampliou a base do governo a tal ponto que não existe mais oposição. Quando acontece isso, a oposição vai para dentro do governo”.

Em outra passagem, o repórter Cristian Klein voltou ao tema e perguntou: “Há suspeitas de que a divulgação das denúncias teria sido fogo amigo e partido do próprio PT.”Nobre respondeu:

“Tem, com certeza. Porque, por paradoxal que pareça, o Palocci é o representante do Lula no governo Dilma. E não tem ninguém com quem o PT tenha tido mais divergência do que com o próprio Lula. Claro, essas divergências ficaram todas debaixo do tapete e estavam esmagadas por 80% de popularidade. Mas houve divergências sérias. O PT sentia que não tinha mais a liderança do governo Lula. O Palocci é a continuidade dessa lógica. Num certo sentido, tem fogo amigo, sim. Mas tem fogo amigo para todo lado. O PSDB está em guerra. O PT está em guerra. O líder do partido está em guerra aberta com o líder do governo na Câmara. O PMDB está unido, mas apenas momentaneamente, como estratégia.”

Brincar de pique

Mais de um parlamentar declarou que o assunto não era do âmbito do Congresso, e sim do governo. Os jornais publicaram sem ressalvas. Declarantes e jornalistas devem ter faltado à aula do ginásio em que o professor ensinou que o governo se compõe de três poderes.

Na esfera do Executivo, a CGU (Controladoria-Geral da União) também se revelou aluna relapsa. A primeira página do Estado de S.Paulo de segunda-feira (30/5) noticia que o órgão “se recusa a apurar denúncias sobre a evolução do patrimônio” de Palocci, “alegando que ele não estava no governo quando recebeu os pagamentos”.

É como uma brincadeira de pique. Eu enriqueço ali, pulo para acolá: “Aqui você não pode me pegar!” Qualquer candidato a função ou cargo público tem seus antecedentes verificados. Se Palocci afirma que pagou devidamente seus impostos, a Receita Federal não poderia ter alertado a presidente eleita sobre a súbita riqueza do postulante a ministro da Casa Civil? Ele teria sido nomeado se a apuração da Folha sobre o sucesso empresarial de Palocci tivesse sido concluída antes da posse de Dilma?

“Porcaria de país”

O manto de seda que protege o ministro-chefe da Casa Civil é largo o bastante para velar seus consulentes. A imprensa mencionou até aqui três empresas que recorreram a suas qualidades de quadro extraordinário: Amil, Santander e WTorre.

Alguma memória poderia ter sido fornecida aos leitores no caso dessa última. Especialmente depois que seu dono, Walter Torre Jr., deu entrevista ao Estadão (27/5) em estilo que esta frase traduz: “Aposto nessa porcaria de país”.

Walter Torre vendeu para o BTG Pactual a WTorre Properties, empresa que detinha os principais ativos de seu grupo – duas torres ao lado do futuro shopping JK Iguatemi, em São Paulo, e o prédio que está sendo construído para a Petrobras alugar – a modalidade “build to suit”, em que a WTorre foi pioneira − no centro do Rio.

A WTorre Engenharia, criada em 1981 e onde reside a principal competência técnica da companhia, foi abocanhada pelo grupo espanhol Essentium, por intermédio da Assignia Infraestructuras. O Essentium passou a ter 50% das ações da WTorre Engenharia. Não se conhece – nem é o caso de conhecer – o acordo relativo ao mando na nova etapa da construtora. Mas é difícil imaginar que os espanhóis poriam dinheiro grande, do qual têm que prestar contas a acionistas, numa empresa que seguiria sendo dirigida por cabeças alheias.

Esses negócios se deram no contexto dos PACs, sigla que recobre uma listagem de obras, e da preparação para a Copa do Mundo e a Olimpíadas, eventos cuja aproximação aqueceu os mercados de construção e imobiliário. Com o tempo, se ficará sabendo o que levou o WTorre, considerado até o fim de 2010 o sexto maior grupo de seu setor, a precisar dramaticamente de dinheiro. O que já se sabe é que a consultoria de Antônio Palocci, o Pelé da metáfora de Lula, não ajudou a empresa a se desviar das armadilhas financeiras que a puseram de joelhos.

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