Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma disfunção generalizada

É triste, ao ler as notícias nos jornais, ver o disfuncionamento das instituições sociais brasileiras. No Rio de Janeiro, policial vira herói à custa de um turista português que perde a vida por uma máquina fotográfica. O povo está tão acostumado com a impunidade dos bandidos e com a má prestação de serviço de parte dos policiais que quando esses trabalham direito tornam-se paladinos. Em São Paulo, a maior televisão do país negocia com bandidos a vida de um jornalista e de seu assistente em troca da midiatização de ações terroristas. Duas vidas foram salvas e a democracia brasileira assassinada.

O jornalismo, que bebeu das idéias iluministas, tem a finalidade de mediar o diálogo entre cidadãos e políticos. Foi exatamente essa função de mediação que consagrou a imprensa como ‘quarto poder’. E o reconhecimento deste ‘serviço público’ fez da liberdade da imprensa uma reivindicação essencial da sociedade. Essa reivindicação antiga, baseada no contexto político e filosófico do Contrato social, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e no Espírito das leis, de Montesquieu (Charles-Louis de Secondat, 1689-1755), garante a vida do corpo social e político, como uma espécie de pacto, assegurando a liberdade e a segurança individual, a paz pública e o gozo da propriedade privada.

Noção de dever

Essas idéias que alimentam a democracia deram um estatuto ao jornalista ‘de servir à causa do progresso humano’. Mas o que vemos hoje é uma disjunção entre as idéias de identidade social natural e identidade social real, definidas pelo sociólogo americano Erving Goffman (1922-1982). A imprensa ainda é percebida (ou se percebe) em função de seu papel preestabelecido, ou seja, sua identidade social natural. No entanto, no contexto social, político e econômico, a pratica jornalística que revela sua identidade social real está em defasagem com os ideais da profissão.

Mas não podemos condenar certas ações dessas duas instituições sociais, peças-chave de toda nação que se diz democrática: a polícia, que deveria garantir a segurança do cidadão, e, a imprensa, que deveria assegurar a liberdade de expressão e o debate público. O acordo que a TV Globo fez com o PCC (tão criticado por quem também já negociou com os bandidos) tem sua explicação. A norma dizia para não se entrar no jogo de chantagem dos bandidos, mas a razão fazia crer que, diante da ineficiência da polícia e dos governos omissos, só o acordo poderia salvar a vida de seus profissionais. E, como já passamos da época das sociedades holísticas, em que o indivíduo era sacrificado pelo todo, a Globo foi racional e responsável, atendendo às exigências dos bandidos.

A responsabilidade se faz acompanhar da noção de dever; é dever do Estado garantir a ordem e preservar o território e o bem-estar. Pensando assim, temos tendência a culpar o Estado por essa disfunção generalizada que está ocasionando a falência das nossas instituições sociais. O Estado, porém, foi confiado a um governo pela sociedade civil. Fomos nós quem escolhemos nossos representantes. Roubo as palavras de João Ubaldo Ribeiro para dizer:

‘Estou começando a suspeitar que o problema não esteja no ladrão corrupto que foi Collor, ou na farsa que é o Lula. O problema está em nós. Nós como POVO.’

De braços cruzados

Escolher errado todo mundo pode uma vez na vida, mas quando isso vira hábito há um problema. E o pior de tudo é que deixamos, caladinhos, nossos representantes fazerem o que bem entendem. Onde está a ação coletiva, o espírito do povo brasileiro, o nosso social construído? Parece que não temos muito do que reclamar além da escalação e do esquema tático de Parreira.

Será que meus amigos franceses poderiam emprestar um pouco do espírito de revolução aos meus conterrâneos? Aqui em Paris há um hábito terrível de se fazer greve e manifestar-se por tudo. Por tão pouco eles vão às ruas e quebram tudo, não estão nem aí em atrapalhar a vida dos outros ou aumentar os custos da segurança pública. Quantos transtornos sofri com toda essa baderna francesa. Depois comecei a participar das ‘manifes’, pois morar na França e não manifestar seria como não provar um bom Bordeaux e não comer baguette. Agora, enfim, compreendo que com essa política (no puro sentido aristoteliano, de luta pela ‘cidade justa’) é que eles conseguem aumento de salário, redução de carga de trabalho etc.

Aqui, do outro lado do Atlântico, vejo políticos deteriorando nossas instituições sociais, bandidos no poder e a população praticamente de braços cruzados, com uma única mobilização virtual pelo voto nulo. Como a esperança é a última a morrer, quem sabe a internet, como novo espaço público, venha a suprir a deficiência da imprensa brasileira…

Crise e diagnóstico

O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) dizia que toda crise nasce de uma deficiência da regulação social. Para ele o conflito é um disfuncionamento social, ou seja, um estado patológico da sociedade. Mas, além dessa idéia de situação difícil a gerir, isso pode estar ligado à noção de crise, idéias relacionadas ao progresso, à regulação e à continuidade.

Georg Simmel (1858-1918), em sua obra que trata da dialética conflito/regulação, diz que o conflito é um mecanismo que equilibra o sistema social, uma espécie socialização. Para o filosofo alemão, é num conflito que uma sociedade pode se posicionar e hierarquizar-se, é o momento no qual as organizações se legitimam. Ele explica que a sociedade tem necessidade tanto de associação quanto de competição; o conflito, por conseguinte, é uma fonte de regulação estruturando as relações coletivas e reforçando ou criando a identidade social.

O filosofo francês Edgar Morin, em seu discurso sobre a ‘crisologia’, confirma que é na situação de crise que as forças da sociedade se revelam e esse processo extremamente rico é o momento ideal para um diagnóstico dos objetos. Então, se a crise e o conflito são realmente elementos estruturais da sociedade moderna, que a imprensa, a polícia, o governo e cada cidadão se aproveitem desse momento de disfunção generalizada para refletir sobre seus papéis. E que esses atores sociais tenham sempre em mente a reflexão de Dominique Méda, especialista francesa em política social: a riqueza de um país não é medida pelo PIB, mas pelo bem-estar do povo e seu grau de civilização mensurados pela educação, o respeito às minorias e a preservação dos recursos naturais.

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Jornalista, aluna da Escola de Altos Estudos da Ciência da Informação e da Comunicação (Celsa), Paris IV-Sorbonne