Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma guerra que não passa na mídia

É incrível como muitas nuances de conflitos nacionais e internacionais são ignoradas pela grande mídia. Desde o dia 14 de novembro, está em curso um conflito de graves proporções no município de Icapuí, Ceará, onde pescadores artesanais de lagosta da praia da Redonda, por não contarem com amparo do Estado na fiscalização, enfrentam à bala barcos que pescam ilegalmente. O tema está, até agora, circunscrito aos jornais de Fortaleza (O Povo e Diário do Nordeste), sem destaque algum na mídia nacional – que, afinal, segue a tendência mundial quando assuntos sérios envolvem uma multidão de simples trabalhadores.

Posso citar, por exemplo, os casos da Somália e Guiné Bissau, que estiveram em destaque no noticiário internacional nestes últimos meses. A primeira, dado aos atos frequentes de ‘pirataria moderna’, com o sequestro de navios comerciais ou de turismo no golfo de Aden; a segunda, pela constante instabilidade política que volta e meia leva a golpes militares e faz da Guiné hoje um típico ‘narco-Estado’, território livre de recepção e distribuição de droga para outros continentes, sobretudo Europa. Comum a ambos, além de serem países africanos e com pouca ou nenhuma institucionalidade consolidada, está a pobreza das populações, boa parte composta por pescadores artesanais.

Hoje, os pescadores da Guiné têm a concorrência desleal dos barcos industriais chineses. Com autorização do governo, um único navio chinês pesca por dia o que um barco artesanal não capturaria em um ano. Da Somália, os meios de comunicação praticamente não informam que muito dos piratas são ex-pescadores que perderam território e estoque de peixe para a poluição causada pelo fluxo intenso de petroleiros oriundos da Arábia Saudita e pelos despejo de lixo tóxico (inclusive radioativo), sem tratamento, por parte de empresas européias que subornam lideranças militares e empestam o Golfo de Aden, agravando a situação de pescadores miseráveis que, a duras penas, mantêm-se em atividade e hoje enfrentam os piratas, a Otan e a poluição do mar.

Entre a repressão e o mutismo

Assistimos agora ao conflito recente na Redonda, em Icapuí, onde as primeiras opiniões oficiais, veiculadas pelos jornais, tendem a criminalizar os pescadores que, revoltados, voltam a queimar barcos que praticam a pesca ilegal. Segundo relatos que colhi junto a alguns deles nesta semana, encontram-se em ‘estado de sítio’, ameaçados mesmo de morte caso circulem por vias públicas do centro de Icapuí, numa flagrante violação do direito constitucional de ir e vir.

O primeiro conflito na Redonda data de 1989. Está registrada no poema de cordel ‘A Guerra dos Redondeiros contra os compressores’, de Chico de Marina, editado em 2001 com apoio do Premio BNB de Cultura, organizado pela professora Mari Cecília Silvestre. A comunidade é desde então referência de organização comunitária e de coragem no enfrentamento das práticas ilegais de captura da lagosta e de reivindicação de seus direitos junto às autoridades – estas, oscilando sempre entre o apoio e a ausência. Os redondeiros, para além da pesca ilegal, defrontam-se com a poluição pelo despejo de resíduos metálicos no mar sob pretexto de criar recifes artificiais, mas que, sem remoção adequada de produtos químicos, contaminam a fauna marinha. Enfrentam ainda na pesca a crescente especulação imobiliária que advém do turismo, acelerada pela pauperização da população que, sem muitas alternativas, vende suas casas, muitas vezes o único bem que possui.

Os exemplos africanos citados estão geograficamente distantes do Brasil. Mas socialmente estarão cada vez mais próximos dos pescadores do Ceará se as autoridades optarem pela repressão aos ‘rebeldes’, e os políticos e a mídia, pelo mutismo.

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Jornalista, historiador e doutorando em Sociologia na Universidade de Coimbra, Portugal