Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma nova forma de totalitarismo

A sociedade de massa contemporânea é uma nova forma de totalitarismo, só que mais perigosa, porque este totalitarismo não é percebido como tal. (Herbert Marcuse)

Até onde se tem notícia, as manifestações contra a livre circulação de idéias emanam do poder constituído, seja ele político, econômico ou religioso. E a luta contra a censura foi e é dirigida ao poder constituído. A mídia é, hoje, poder constituído, o ‘quarto poder’, como chamam alguns, e como tal pode exercer censura. Mas o quarto poder, diferente dos outros, está completa e totalmente protegido pelas leis que asseguram a liberdade de imprensa. Na trama intrincada de relações imprensa e poder constituído e imprensa quarto poder é difícil caracterizar atos que explicitem o totalitarismo midiático do qual nos fala Marcuse, atos que atentem contra a livre expressão de idéias, a livre circulação de informações garantida pela Constituição de vários países do mundo ocidental democrático, inclusive a Constituição Brasileira no capítulo V, artigo 220 e no parágrafo 2º. A contrapartida à plena liberdade de imprensa está nos códigos de ética das empresas de comunicação e das associações de jornalistas, que por suas características específicas não tem força de lei e sequer estabelecem punição para os infratores.

O que se constata no Brasil há algum tempo e mais caracterizadamente nos últimos meses, durante a crise política que abalou o país, é que pouco a pouco e cada vez mais intensamente a atuação da imprensa tem ido de encontro aos códigos de ética por ela mesma elaborados. Vale lembrar que a análise das matérias jornalísticas de abordagem político-partidária têm isenção limitada na medida em que, como afirma o professor-doutor Sérgio Mattos, estudioso da comunicação, ‘a imparcialidade é mito’. Mesmo dentro de limites, nota-se o esforço de empresas jornalísticas e de jornalistas responsáveis e cônscios do seu papel na sociedade de, no mínimo, ouvir as duas partes, de apurar a notícia que muitas vezes chega de fontes consideradas fidedignas pela posição social que ocupam, mas que, muitas vezes também, estão fazendo de boatos fatos.

Se nestes casos é difícil imputar partidarismo ou ausência de isenção das matérias veiculadas, em outros, fica plenamente caracterizada uma atuação que fere frontalmente os códigos de ética de empresas e profissionais da comunicação. O tratamento da revista Veja de 5 de outubro de 2005, publicada pela Editora Abril, na matéria ‘7 razões para dizer não’ possivelmente se tornará um clássico em análises futuras – e mais isentas pela distância temporal – da atuação da mídia neste início de século.

Um exemplo na Bahia

Mesmo admitindo, como Eric Hobsbawm, a dificuldade de analisar fatos de uma história em que somos sujeito e objeto, é necessário começar a fazer reflexões sobre o que estamos presenciando, inclusive porque as mudanças – o que vem à frente – são resultado da trama de fatos aparentemente insignificantes do presente. Segundo Eric Fromm, os regimes totalitários não aparecem do nada, como num passe de mágica. Lembra que as condições para a emergência do nazismo na Europa, especialmente Alemanha, estavam dadas. E o mundo virou o rosto. Como viramos, até certo ponto, para as condições político-sociais brasileiras que nos levaram ao golpe e à ditadura militar.

O que precisa ser observado já, e acompanhado analiticamente, é o fato, sutilmente aparente hoje, de a mídia estar ampliando sua malha de poder. A atuação da Veja aponta para uma situação instigante e inusitada, se não contraditória, na medida em que a mídia é a beneficiária das conquistas sociais relacionadas à liberdade de imprensa. Uma atuação que autoriza e faz valer as afirmações de Marcuse.

Estamos assistindo a uma inversão do sentido tradicional da censura. Com a liberdade amplamente garantida na legislação, o quarto poder não se satisfaz em determinar o que a população como um todo deve saber – como foi o caso da Veja, cuja ação, além de ferir os códigos de ética profissionais e empresariais, é claramente um ato de censura na medida em que cerceou toda a população brasileira no acesso à informação. Ao poder do quarto poder já não basta impor sua opinião. A sua malha já atinge o poder constituído, especialmente aquele que depende do voto. Um fato recente ocorrido em Salvador, capital do estado da Bahia, é bastante ilustrativo.

Sem armas para lutar

O poder municipal de Salvador cedeu às pressões de um jornal local ao nomear e não empossar para o cargo de secretario de Comunicação da Prefeitura um jornalista de nome reconhecido nacionalmente tanto na área acadêmica como no jornalismo diário da cidade. O poder público se curvar às pressões de um órgão de imprensa de forma tão acintosa é inédito na Bahia. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Bahia não se manifestou. A imprensa baiana comenta em off, mas o fato não teve a repercussão esperada numa categoria que considera a liberdade de imprensa essencial para a democracia.

O que se viu na Bahia, da perspectiva social, é tão ou mais terrível que a abominada censura. A malha do quarto poder arranca da mão dos trabalhadores o apelo à legislação trabalhista. Inibe, quando não anula, o direito do trabalhador de recorrer à Justiça quando considera inadequadas rescisões contratuais – motivo do veto do proprietário do jornal ao nome do jornalista.

O assunto é da maior gravidade. A julgar pelas observações de Fromm e Marcuse, saímos de uma ditadura militar e estamos entrando na ‘ditadura da imprensa’. E sem armas para lutar contra ela.

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Jornalista, mestre, especialista em Produção Editorial, professora dos cursos de Comunicação/Jornalismo da Unibahia e Produção Editorial da Faculdade Hélio Rocha