Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Uma nova onda de premiações

A América Latina está com a bola cheia. Esqueça a ebulição das bolsas e do mercado imobiliário. As nossas latitudes estão cheias de si mesmas. Nesta semana, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ganhou o prêmio Rodolfo Walsh pela liberdade de imprensa. Seu feito: dar voz a incontáveis pessoas, ignoradas pelas ‘elites dominantes’ e, portanto, sem canal próprio de expressão, nas palavras do reitor da respeitada Universidade de La Plata.

Para o leitor desavisado, pode soar um impropério. Afinal, Chávez não é aquele que, em 2007, mandou tirar do ar a emissora mais popular do país, a RCTV, para depois encampar a rede Globovisión e afugentar seu dono, Guillermo Zuloaga, do país? E não foi ele que, com uma canetada, puxou a tomada de 34 estações de rádio só porque elas mantinham uma linha editorial distante de sua cartilha bolivariana?

Ele mesmo. Não é a primeira honraria esdrúxula do comandante do ‘socialismo do século 21’, que, em 2004, faturou o Prêmio Internacional Kadafi de Direitos Humanos. Agradecido, o venezuelano correspondeu ao mimo, presenteando o líder líbio, Muamar Kadafi, com uma réplica da espada de Simon Bolívar, herói da independência latino-americana.

Bandeiras universais

Mas há nesse afago mútuo algo novo no ar. Quando o Greenpeace inventou a ‘motosserra de ouro’, era antes de mais nada uma forma irônica e bem-humorada de chamar atenção para a ameaça ao meio ambiente.

Blairo Maggi ganhou o troféu em 2006, não gostou e depois se redimiu, abraçando a causa verde. Se foi por vergonha, pressão cívica ou convicção pessoal, não se sabe. A ironia do Greenpeace, porém, teve seu mérito.

A nova moda de premiação, porém, é diferente. Mistura de cinismo com autoconvecimento, ela nasce da necessidade de tiranos e demagogos de justificar suas arbitrariedades, apropriando-se justamente das admiráveis bandeiras universais – a liberdade, convivência democrática, direitos humanos – que dia após dia tratam de sufocar.

Nova premiação

Assim, Chávez, que amordaça sua imprensa, transforma-se, na Argentina, em zelador da livre expressão com a bênção da presidente Cristina Kirchner, ela mesma empenhada em esmagar os jornais Clarín e La Nación. A autocracia sempre foi uma grande permuta. Já que flexibilizaram o conceito, há muitos outros prêmios que se pode imaginar nessa linha:

Troféu Companheiro Empreendedor. Com o comunismo em concordata, 500 mil a 1 milhão de servidores públicos cubanos serão dispensados para se defenderem como podem no mercado inexistente. Quem sobreviver merece mesmo uma medalha, pelo menos aqueles que não se enriquecerem demais

O Prêmio de Imperialismo Digital vai para Daniel Ortega. Ex-guerrilheiro sandinista, o presidente nicaraguense anexou um naco de pântano da Costa Rica, brandindo uma versão fajuta do Google Maps – versão que foi desmentida pelo próprio Google.

No quesito da Contabilidade Criativa, é páreo duro, disputado avo por avo entre o Instituto Nacional de Estatística e Censo da Argentina (Indec) e o seu par venezuelano, com a mesma sigla. Ambos milagrosamente calculam a inflação de seus respectivos países em metade do índice de analistas de mercado.

O fio condutor da nova premiação, é claro, é a iniciativa dos governos que falam em respeitar direitos, transparência e contas acuradas para depois ignorá-los. Eles reprimem suas sociedades em nome de libertação. É o ‘discurso duplo’ de George Orwell, na versão 2.0.

Não é a primeira vez que um líder carismático latino usa o dom da palavra para cercear a dos outros. Juan Perón, o eterno caudilho argentino, subiu ao palanque e mandou fechar 110 jornais entre 1943 e 1946. Talvez nenhum dos seus discípulos de hoje chegue a tanto. No entanto, por se esforçarem, ganham uma estrelinha.

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Colunista do Estado de S.Paulo e correspondente da revista Newsweek; edita o site www.brazilinfocus.com