Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Umberto Eco, mídia e mentiras

Número Zero (editora Record) é o mais recente livro de ficção do internacionalmente renomado filósofo, ensaísta, midiólogo e escritor Umberto Eco. O tema do seu sétimo romance é o mau jornalismo praticado na Itália nas últimas décadas, em especial durante a chamada Operação Mãos Limpas (Mani pulite). A operação, que visava esclarecer casos de corrupção na década de 1990, colocou na cadeia grande parte dos políticos e empresários italianos, levando ao fim a chamada Primeira República.

Ao contrário do que se possa imaginar, a Operação Mãos Limpas não deu lugar a um governo honesto e democrático. Após a suposta limpeza geral, quem chegou ao poder, como primeiro-ministro, e por lá ficou nove anos, foi ninguém menos do que o inescrupuloso Sílvio Berlusconi, um magnata da comunicação (Grupo Mediaset) e proprietário do clube de futebol italiano Milan que usou e abusou da política para ampliar seu império midiático, enriquecer, favorecer amigos e correligionários. Em 2013, a revista Forbes o classificou como o 194º homem mais rico do mundo.

A crise (econômica, política, social e cultural) da qual a Itália ainda não se recuperou, pode ser vista como a herança da era neoliberal de Berlusconi. Herança que tem na mídia, no mau jornalismo que tomou conta daquele país, um dos seus principais corresponsáveis.

Para falar da Itália no passado recente, Umberto Eco ambientou seu romance em uma redação de jornal em Milão. Mais precisamente em um grupo de redatores, reunidos ao acaso, que preparam um jornal. Mas não se trata de um jornal informativo. O objetivo da publicação é chantagear, difamar, prestar serviços duvidosos a seu editor, denominado comendador. Se fosse publicado, o jornal teria o nome de Amanhã, mas para não ter problemas seus números experimentais trabalharam apenas com fatos já acontecidos.

Quando um dos redatores de Amanhã pergunta ao editor-chefe o que poderia acontecer-lhe depois de escrever, durante um ano, tudo o que fez para favorecer os interesses e chantagens do proprietário da empresa, ouve como resposta: “Não use a palavra chantagem. Vamos publicar notícias, como diz o New York Times, “all the news that’s fit to print”… (p. 28)

O jornal faz as notícias

A elaboração das pautas e das reportagens do Amanhã constituem-se em verdadeiras aulas de safadezas. Para explicar aos redatores um dos princípios fundamentais do jornalismo democrático: fatos separados de opiniões, o editor-chefe lembra o que é feito nos grandes jornais de língua inglesa:

“Quando falam, sei lá, de um incêndio ou de um acidente de carro, evidentemente não podiam dizer o que acham daquilo. Então inserem no artigo, entre aspas, as declarações de uma testemunha, de um homem comum, um representante da opinião pública. Pondo-se aspas, estas afirmações se tornam fatos, ou seja, é um fato que aquele sujeito tenha expressado tal opinião. Mas seria possível supor que o jornalista tivesse dado a palavra somente a quem pensasse como ele. Portanto, haverá duas declarações discordantes ente si, para mostrar que é fato que há opiniões diferentes sobre o caso, e o jornal expõe esse fato irretorquível. A esperteza está em pôr antes entre aspas uma opinião banal e depois outra opinião, mais racional, que se assemelhe muito à opinião do jornalista. Assim o leitor tem a impressão de estar sendo informado de dois fatos, mas é induzido a aceitar uma única opinião como a mais convincente” (p. 55).

Para tirar dúvidas, o editor-chefe dá um exemplo.

“Um viaduto desmoronou, um caminhão caiu e o motorista morreu. O texto, depois de relatar rigorosamente o fato, dirá: Ouvimos o senhor Rossi, 42 anos, que tem uma banca de jornal na esquina. Fazer o que, foi uma fatalidade, disse ele, sinto pena desse coitado, mas destino é destino. Logo depois, um senhor Bianchi, 34 anos, pedreiro, que estava trabalhando na obra ao lado dirá: É culpa da prefeitura, que esse viaduto estava com problemas eu já sabia há muito tempo. Com quem o leitor se identificará? Com quem culpa alguém ou alguma coisa, com quem aponta responsabilidade? Está claro? O problema é no quê e como pôr aspas” (p.56).

Mais adiante, para deixar suas ideias ainda mais claras, o editor-chefe enfatiza que “não são as notícias que fazem o jornal, e sim, o jornal que faz as notícias. E saber pôr juntas quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia” (p. 57). Dito de outra forma, o redator-chefe chama atenção para o fato de que “notícia quem faz somos nós, e é preciso saber fazer a notícia brotar das entrelinhas” (p.59).

Factoides e interesses escusos

Professor emérito da Universidade de Bologna, Umberto Eco sabe do que está falando, pois é um dos raros acadêmicos a conciliar o trabalho teórico-crítico com produções artísticas e jornalísticas, exercendo enorme influência em todos estes âmbitos. E com o humor cortante que lhe é peculiar, faz, neste novo livro, uma análise que cabe como luva à grande maioria da mídia brasileira nos dias atuais. Até porque, exemplos recentíssimos de mau jornalismo, de factoides, de jornalismo movido a interesses escusos não faltam entre nós.

Em 15/06, o jornal O Globo publicou, em destaque, no caderno Mundo, que “senadores brasileiros dizem que Venezuela negou permissão para avião da FAB levá-los a Caracas”. No corpo da matéria só há declarações dos próprios senadores, com vários deles, a exemplo de Aécio Neves e Aloysio Nunes confirmando que o governo da Venezuela havia barrado a entrada da comitiva que pretendia visitar políticos de oposição detidos naquele país.

Para o leitor menos arguto ou mais apressado, o simples fato da matéria valer-se de várias fontes, mesmo que todas do mesmo espectro político-partidário, já seria sinal de verdade. Mais ainda: nem o subtítulo indicando que o governo da Venezuela ainda não havia se pronunciado sobre o assunto, serve para reduzir o impacto negativo da “notícia”. Os desdobramentos deste factoide nem todos os leitores acompanharam.

Nunca houve, por parte do governo venezuelano, qualquer proibição a que os senadores brasileiros fossem a Caracas visitar presos políticos. Apesar disso, a velha mídia brasileira em momento algum mostrou a falta de propósito da viagem e, mais ainda, explicou aos leitores, quem eram os tais presos políticos. Ao invés de injustiçados, como os senadores brasileiros queriam mostrar, os presos eram responsáveis por graves atentados à democracia, em que 43 pessoas foram mortas.

Em momento algum se questionou a relevância desta comitiva cujos integrantes nunca tiveram qualquer preocupação com presos políticos no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo, sem falar no que a viagem significava em termos de ingerência interna na política de um país vizinho. Dito de outra forma, o que o jornal O Globo não publicou é que a tal viagem tinha por objetivo apenas complicar as relações diplomáticas entre o Brasil e a Venezuela, fazendo parte do script do “terceiro turno” que a oposição vem desenvolvendo no país, por não aceitar a vitória da presidente Dilma para um novo mandato.

Evidências inventadas

Como no diário Amanhã, imaginado por Umberto Eco, a mídia brasileira adota, quando lhe convém, os desmentidos, sobretudo os desmentidos dos desmentidos. Segundo o editor-chefe do fictício diário italiano, três são os elementos essenciais para um desmentido do desmentido: “Testemunhos ouvidos, anotações no caderno (do jornalista) e incertezas várias quanto à confiabilidade do desmentidor” (p.62). Assim, pouco adianta o governo da Venezuela anunciar que nunca houve proibição à presença da comitiva de senadores brasileiros em Caracas, pois o que a mídia destacou no dia seguinte, O Globo à frente, é que a comitiva não pode chegar ao seu local de destino, como se isso fosse culpa do governo de Nicolás Maduro. O que houve foi um enorme engarrafamento de trânsito (frequente em Caracas). Mas o que foi noticiado é que o governo Maduro estimulou a presença destes manifestantes que chegaram a cercar a van que conduzia os senadores.

Alguns jornais brasileiros, mais inflamados, mencionaram até mesmo que a van que conduzia a comitiva teria sido alvo de pedras atiradas pelos manifestantes. Pedras que não apareceram em nenhuma filmagem ou fotos sobre a fracassada missão. Mas isso, pelo visto, como ensina o redator-chefe do Amanhã, pouco importa. Se não há evidências, elas podem ser inventadas. Como observa um dos redatores do diário imaginado por Eco, “registramos o desmentido, mas esclarecemos que tudo o que relatamos provém de documentos judiciais, ou seja, dos autos da denúncia. O fato de que a pessoa depois foi absolvida na fase de instrução é algo que o leitor não fica sabendo. Também não sabe que aqueles autos deveriam ser sigilosos, e não fica claro de que modo chegaram a nós, nem até que ponto são autênticos” (p. 63).

A utilização de denúncias anônimas e de documentos que apenas os redatores de Amanhã têm acesso é outro ponto que chama atenção pela semelhança com a realidade da mídia brasileira. Já se tornou frequente revistas como as semanais Veja, do grupo Abril, e Época, das organizações Globo, terem acesso exclusivo a documentos, declarações e delações que nenhum outro veículo obtêm. Some-se a isso que essas declarações, em geral bombásticas e comprometendo apenas o governo, setores do PT e da base governista, são publicadas no final de semana e funcionam como uma espécie de pauta para os demais veículos na segunda-feira e nos dias subsequentes.

Insinuações

Mesmo que os atingidos pelas denúncias neguem que aquilo seja verdade, acaba prevalecendo a dúvida, pois a opinião publica, como se diz, já foi contaminada pela denúncia. E um volume avassalador de denúncias acaba dando lugar a certezas. Aliás, como assinala um dos redatores de Amanhã, “em vez de proclamar dados que alguém possa verificar, é sempre melhor limitar-se a insinuar. “Insinuar não significa dizer algo preciso, serve só para lançar uma sombra de suspeita sobre o desmentidor” (p.63).

Esta frase, aliás, caracteriza exatamente o que foi feito pelo jornal Folha de S.Paulo na quinta-feira, 25/6, ao noticiar, na sua edição digital, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia ingressado com pedido de habeas corpus preventivo na Justiça do Paraná para não ser preso como acusado na Operação Lava-Jato. A matéria constituía uma espécie de desdobramento do que havia sido publicado, no fim de semana, por Veja e Época que, com textos sem fontes e valendo-se de informações “privilegiadas” insinuaram ao limite uma possível prisão de Lula.

Como qualquer estudante de primeiro ano de Jornalismo sabe, jamais uma informação pode ser publicada sem que os dois lados envolvidos sejam ouvidos. Portanto, se alguém informava, não importa quem, que Lula havia entrado com um pedido de habeas corpus preventivo, o mínimo que um jornalismo sério deveria ter feito é ouvir o ex-presidente. Se ele não fosse encontrado e se mesmo encontrado se recusasse a falar não importa, seria notícia. O que não poderia jamais ter acontecido é a informação ser publicada sem ouvir o ex-presidente.

Some-se a isso que é impossível acreditar que não haja na Folha de S.Paulo um redator ou editor minimamente informado sobre como funciona um pedido de habeas corpus. Cinco minutos após a publicação da informação, uma nota anunciava “Erramos”, assinalando que não foi Lula que pediu habeas corpus, mas que a iniciativa era de um consultor sem ligação com o ex-presidente”, bem ao estilo do cínico redator de Amanhã.

Mais tarde, às 15h07, a pequena nota era substituída por outro “Erramos”, com o título e a chamada na home page do jornal e também no portal UOL sendo corrigidos. Apesar dos desmentidos, a versão original já havia chegado a veículos do país inteiro e circulava pelas redes sociais, impulsionada por uma equipe a serviço do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), um dos principais desafetos do ex-presidente Lula.

Como nos últimos anos, a velha mídia brasileira deixou de lado (se é que algum dia o teve) o compromisso com a informação e assumiu o papel de partido político de oposição, não é fácil acreditar que erro destas proporções seja apenas responsabilidade de um jornalista incompetente. Mais uma vez, os ensinamentos dos editores do diário Amanhã servem como uma luva para seus colegas brasileiros. Ao justificar que todos os artigos ou assuntos de maior impacto da edição deveriam levar em conta os interesses do comendador, um dos redatores do fictício diário italiano põe o dedo na ferida: “Está dizendo que, para cada artigo, vamos precisar verificar se é do agrado do comendador?” (…) (p.74)

E o editor-chefe, responde: “Só pode ser assim, ele é o nosso acionista de referência, como se costuma dizer” (p.74).

Mão única

De volta ao jornal dos Frias, a Folha deixou nítido o empenho da publicação em tentar criminalizar o ex-presidente Lula, o que começa a irritar até conceituados juristas que se sentem incomodados com as afrontas à lei em se tratando dos rumos da Operação Lava Jato.

Além do jornal Folha de S.Paulo, a família Frias é proprietária do portal UOL. Difícil aceitar que uma informação como esta, com o impacto que se poderia imaginar, foi feita sem que “a preferência do acionista de referência fosse verificada”. Detalhe importante: os Frias, como quase todos os proprietários da autointitulada grande mídia brasileira, foram flagrados com contas secretas na agência Suíça do banco HSBC. Ao contrário da mídia na Inglaterra, França ou mesmo na Argentina, que publicaram a relação de todos os correntistas em seus países, no Brasil, o jornalista Fernando Rodrigues, que teve acesso à relação das 6.606 contas de brasileiros, não divulgou a lista sob o argumento de que não tinha como apurar a legalidade delas (se estavam devidamente declaradas ao Imposto de Renda e conforme o que determina o Banco Central). Ter contas no exterior não é crime, mas muitos correntistas utilizam-se delas para esconder dinheiro e pagar menos impostos. Em valores de 2006/2007, os brasileiros tinham depositados nestas contas US$ 7 bilhões.

No episódio, o jornalista Fernando Rodrigues, colunista do UOL, contou com o apoio do acionista de referência da Folha e de vários de seus colegas. Apoio que, pelo visto, tem mão única: só serve quando for do interesse destes acionistas. Quando não for, publique-se primeiro e apure-se depois! Coincidentemente, enquanto a Operação Lava Jato figura há meses nas manchetes da Folha, Estado de S.Paulo e nos veículos das organizações Globo, as denúncias envolvendo as contas no HSBC e mesmo os esquemas de corrupção da Operação Zelotes, que flagrou fraudes fiscais de megaempresas (Ford, Mitsubishi, Anfavea, Santander e RBS, afiliada da Rede Globo) continuam sendo solenemente ignorados pela mídia brasileira, num show de hipocrisia que faria inveja aos mais cínicos entre os mais cínicos integrantes da redação de Amanhã.

É importante lembrar que, no Brasil, como na Itália dos anos recentes, o jornalismo investigativo deu lugar a futricas, intrigas e disputas de interesses de todos os tipos. Ao invés de procurarem as informações, os jornalistas – com as exceções de praxe – preferem aguardar que as informações cheguem até eles e as publicam sem quaisquer cuidados, especialmente se forem contra um governo do qual não gostam e em prol de um suposto apelo à honestidade. Como ressalta um dos redatores de Amanhã, “apelo à honestidade sempre vende bem” (p. 155) enquanto outro redator da mesma publicação emenda: “a questão é que os jornais não são feitos para divulgar, mas para encobrir notícias” (p.162). Portanto, dá para pensar: em meio a tantas divulgações, o que a mídia brasileira quer encobrir?

Sem futuro

É inegável que a mídia se transformou no principal elemento a estimular turbulências políticas no país. O processo que começou na Venezuela há quase dois anos é praticamente o mesmo que se repete aqui, na Argentina, no Equador e no Chile. Onde quer que haja governo comprometido com a inclusão social, este governo será combatido pelas forças conservadoras que têm na velha mídia seu porta-voz. No Brasil, o combate é contra os programas sociais e o pré-sal, no Equador, a luta mais recente é em função da elite se sentir ameaçada pelo projeto de Lei das Heranças – que pretende aumentar os impostos proporcionalmente sobre elas – na Argentina, à postura altiva de Cristina Kirchner em relação à dívida externa é um dos pontos que mais incomodam.

Em todos estes países, a elite conservadora, através da mídia está a postos, orquestrando como pode a desestabilização dos governos que insistem na tecla da inclusão social. Até agora, por exemplo, o candidato da oposição Aécio Neves, não aceitou a derrota e trabalha 24 horas por dia pelo fim do governo Dilma Rousseff. Da mesma forma que o candidato derrotado na Venezuela em 2013, Henrique Capriles, também não admite ter perdido e continua insuflando e causando tumulto em razão dos seus interesses pessoais e do grupo que representa.

Dito de outra forma, as ações da velha mídia brasileira e as de seus similares nos países vizinhos são praticamente iguais e quase sempre atuam em conjunto. Basta lembrar o destaque que Veja deu ao chamado Caso Nisman na Argentina e o destaque que o grupo Clarín, as Organizações Globo de lá, tem dado aos “problemas com o PT no Brasil”, em especial na Operação Lava Jato. Curiosamente, a Veja ainda parece não ter se dado conta que, apesar de todo o bombardeio da mídia contra o governo Kirchner, há um processo eleitoral em marcha na Argentina, em que o candidato apoiado pela presidente está à frente na preferência popular.

Este assunto, pelo visto, não interessa aos acionistas de referência. Se fosse o contrário, se o candidato de Kirchner estivesse em posição ruim, aí, sim, as notícias e manchetes sobre as eleições no país vizinho se sucederiam na mídia brasileira.

O diário fictício Amanhã não chegou a circular. Quanto à velha mídia brasileira, o que se observa é a perda continuada de leitores e de credibilidade por parte de jornais, revistas, emissoras de rádio e TV que insistem no caminho da desinformação, da mentira e do mau jornalismo. Razão pela qual mais uma vez Umberto Eco e o editor-chefe de seu fictício diário estão com a razão. Este tipo de mídia não tem futuro. Ela é uma espécie de ontem que teima em ser amanhã.

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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade