Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vamos falar de arte?

Mesmo quem desinteressadamente acompanha notícias acerca de festivais de cinema e estreias de filmes no Brasil já deve conhecer a controvérsia envolvendo a proibição de exibição do longa Um filme sérvio [Um filme sérvio: terror sem limites. Direção de Srdjan Spasojevic. Sérvia: Petrini Filmes distribuidora. 2010 (104 min.)], primeiro no Rio de Janeiro e depois em todo o país.

No filme, Milos (interpretado por Srdjan Todorovic), um ator em dificuldades financeiras depois que o setor de produções pornográficas em que atuava entra em decadência, aceita participar de um novo trabalho, mas acaba conduzido à força para o mundo dos snuff movies [o termo inicialmente designava filmagens contendo cenas reais de mortes, mas acabou se convertendo num subgênero cinematográfico: produções terror/horror de teor pornográfico em que atores são torturados e mortos sem encenação. A existência desses filmes jamais foi comprovada, mas lendas em torno disso inspiram inúmeras ficções, podendo-se destacar O bravo, de 1997, dirigido e estrelado por Johnny Depp; Morte ao vivo, também de 1997, dirigido por Alejandro Amenábar; 8 milímetros, de 1999, com Nicholas Cage no elenco; além do próprio filme tratado neste artigo]. O filme, assim resumido, parte de uma premissa interessante – ao menos para os apreciadores do gênero terror/horror – e que prometia ser, ainda, intelectualmente relevante, uma vez que o diretor Srdjan Spasojevic nunca deixou de destacar, nas suas várias entrevistas concedidas [como exemplos, apenas duas entrevistas, uma anterior e outra posterior à proibição: LOPES, José Pedro. Fantasporto 2011: entrevista a Srdjan Spasojevic, realizador de A Serbian Film, o filme-choque do festival. C7nema, 22 fev 2011. Acesso em 14 ago 2011, disponível aqui; TOMAZZONI, Marco. Diretor de Serbian Film diz: “Se quer entretenimento, não veja”. iG, 27 jul 2011, acesso em: 14 ago 2011, disponível aqui], o aspecto metafórico da película em relação à história sócio-político-cultural da Sérvia.

Inteligência e clareza

Um filme sérvio, no entanto, contém cenas de extrema violência física e psicológica que levaram a juíza Katerine Jatahy Nygaard, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro, a pedido do diretório regional do partido Democratas, e a desembargadora Gilda Maria Dias Carrapatoso, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a proibirem sua exibição no estado. Depois, no último dia 9 de agosto, o Ministério Público Federal solicitou, sendo atendido pela Justiça Federal em Belo Horizonte, a proibição da exibição em circuito nacional da polêmica produção sérvia.

A cena mais comentada – e a que parece ter desencadeado os pedidos de proibição – envolve abuso sexual de recém-nascido, mas ainda há mutilação, assassinato, mais pedofilia, suicídio e necrofilia, em diversas passagens, tanto explícitas quanto sugeridas. Nada disso, porém, justifica a censura ao filme – e o termo é exatamente esse, censura, visto que o Ministério da Justiça já classificou a obra como “não recomendada para menores de 18 anos” e mesmo assim ela segue proibida de ser exibida nas salas de cinema brasileiras –, que deveria ser avaliado unicamente por seus aspectos artísticos, pois foi realizado num contexto de produção e distribuição midiático cuja essência é, teoricamente, artística: o cinema.

Eu não gosto desse filme – e o pronome pessoal que abre este parágrafo não está aí por puro acaso… As atuações são artificiais (a única exceção, talvez, seja a do ator-mirim que interpreta o filho do protagonista, convincente como uma criança curiosa e confusa descobrindo a sexualidade), a direção é ruim (Srdjan Spasojevic não faz crer em nenhum momento que seu filme seja uma alegoria político-social da Sérvia, oferecendo, em vez disso, uma história cujo único resultado é mesmo o de chocar visualmente o público), o roteiro é mal desenvolvido (só descuido e falta de revisão explicam incoerências como a de um grupo organizado, que se sabe criminoso, documentar em vídeo todo o seu modus operandi e não manter em segredo esse vídeo) – outros problemas do filme são detalhados, num divertido texto [GUERRA, Felipe. Serbian Film, A: Late, mas não morde. Boca do Inferno, 12 ago 2011, acesso em 13 ago 2011, disponível aqui], pelo jornalista e cineasta Felipe Guerra, que consegue, ainda, destacar com competência aspectos positivos da obra.

E essas são apenas algumas razões de por que, para mim, Um filme sérvio é uma das piores peças cinematográficas do ano. Mas eu assisti ao filme, me encaixo na classificação etária do Ministério da Justiça e tirei minhas próprias conclusões sobre a obra. Outras pessoas podem, no entanto, avaliá-la de outra forma, chegando a conclusões diferentes das minhas, porém igualmente válidas. Dessa mesma forma se posicionou o crítico de cinema Pablo Villaça em seu blog, argumentando com inteligência e clareza em texto [VILLAÇA, Pablo. Um filme sérvio e os ditadores do bom gosto. Diário de Bordo, 04 ago 2011, acesso em: 14 ago 2011, disponível aqui] que merece ser lido pela discussão acerca de a quem cabe a decisão sobre o que deve ou não ser artisticamente apreciado.

A transmutação da arte

Uma pesquisa rápida pelo Google mostra como a proibição de Um filme sérvio tem abastecido a mídia jornalística e cultural nas últimas semanas. O foco de toda a discussão, obviamente, é a censura sofrida pelo filme no Brasil. Discussão relevante e legítima que começa a render, sobretudo graças a alguns sites dedicados à cultura cinematográfica, um tratamento do tema com mais profundidade, oferecendo uma alternativa de debate à mera notificação feita, por exemplo, por jornais como Folha de S.Paulo [CANÔNICO, Marco Aurélio. Após censura, exibição de polêmico filme sérvio no Rio muda de sala. Folha.com, Ilustrada, 21 jul 2011, acesso em: 14 ago 2011, disponível aqui] e O Globo [O GLOBO. A Serbian Film é proibido em todo Brasil. [sic] O Globo, Cultura, 09 ago 2011, acesso em: 14 ago 2011, disponível aqui], em suas respectivas versões online. Mas um dos pontos mais interessantes de toda a produção – salientado, inclusive, pelo personagem Vukmir (Sergej Trifunovic) no enredo do próprio filme – tem passado despercebido por jornais, sites, público etc.: praticamente inexistem, na imprensa, falada ou escrita, discussões sobre arte.

Ora, não seria esse um bom momento para se propor um debate que explorasse mais do que a recorrente leviandade das notícias? A questão da censura é importante, como já destacado, mas não esgota as possibilidades de discussão em torno de Um filme sérvio que, uma vez tornado a pauta do momento quando o assunto é cinema, ao menos poderia servir como introdução para se tratar, por exemplo, da presença/ausência da(s) arte(s) e de sua (des)valorização nos discursos de todos os dias. Antigas questões como os limites da arte (há limites? quais?), o que é – ou o que pode ser – arte (contemporânea?) e quem confere a determinada produção o estatuto de obra artística ainda hoje podem render material para debates, sobretudo numa sociedade marcadamente materialista, autocomplacente e dada a escapismos por meio de propostas (artísticas?) cada vez mais superficiais. No significativo texto “O descaso pela arte” [ALMANDRADE. O descaso pela arte. Aula de Arte, acesso em: 14 ago 2011, disponível aqui], o artista plástico Almandrade chama a atenção, justamente, para a transmutação da arte, na contemporaneidade, em objeto mercadológico, submetido a interesses políticos e midiáticos que suplantam seus atributos estéticos.

Deu seu show e se fez notar

No caso da censura à obra cinematográfica sérvia, há toda sorte de opiniões – contrárias e favoráveis, menos e mais corteses, bem e mal apresentadas – nos espaços reservados a comentários de leitores em matérias de publicação online. Além disso, não se deve desprezar a atual facilidade de acesso a obras como esse Um filme sérvio, seja pela possibilidade de baixá-las pela internet, seja pela aquisição de DVDs piratas – e certamente toda essa publicidade involuntária trouxe mais visibilidade ao filme do que as sobreavaliadas cenas dirigidas por Srdjan Spasojevic jamais trariam. Mas na questão da arte, as reflexões provêm de admiradores de criações artísticas – que são poucos –, estudiosos de história da arte – que são menos ainda – ou, nesse caso específico, dos raros apreciadores de subgêneros cinematográficos marginalizados, subordinados ao já periférico gênero terror.

Talvez a arte não esteja sendo discutida por ser, atualmente, encarada como um passatempo, passageiro como uma moda, um momento de diversão – e não é preciso refletir sobre um divertimento, apenas divertir-se. Talvez ela ainda volte a ser vista como uma forma de conhecimento, um momento de contemplação reflexiva. Na sociedade do consumo, porém, é a sedução da publicidade que conquista espaços. E na “sociedade do espetáculo”, Um filme sérvio conseguiu dar seu show e se fazer notar. Já cumpriu, portanto, sua função. Qual a próxima polêmica?

 

Leia também

Um filme sérvio / Falsa polêmica sobre a censura – Luciano Trigo

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[Silmara Rodrigues é professora, Campinas, SP]