Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Vida longa à guerra de palavras

‘Para compreender o que pode ser dito, e sobretudo o que não pode ser dito, no palco, é preciso conhecer as leis de formação do grupo dos interlocutores – é preciso saber quem é excluído e quem se exclui. A censura mais radical é a ausência.’ (Pierre Bourdieu, O poder simbólico).

Os desdobramentos da operação da PF que resultou na prisão e subseqüente liberação de Daniel Dantas e cia. já renderam milhares de linhas e minutos na mídia. Este conflito verbal transformou-se rapidamente num importante episódio da comunicação de massas que exige alguma reflexão.

O episódio começou com a imagem inédita do banqueiro de colarinho sujo algemado. O segundo ato foi a entrevista do presidente do STF desautorizando publicamente a prisão do mesmo sob a alegação de que ocorreu um atentado contra o Estado de Direito. No dia seguinte, já na qualidade de relator do processo, Gilmar Mendes mandou soltar Daniel Dantas. Mas o banqueiro voltaria para a cadeia com base numa nova ordem de prisão, a qual foi sumariamente revogada pelo presidente do STF nos autos do habeas corpus. As trocas de carícias entre situação e oposição começaram e rapidamente contaminaram o debate na imprensa.

Muitas foram as reações na mídia e da mídia. Em razão do vulto que tomou, a guerra verbal desaguou num pedido de impedimento do presidente do STF protocolado no Senado por sindicalistas. Mas antes que isto ocorresse, diversos atores se digladiaram intensa e publicamente para monopolizar a atenção da população e, é claro, demonstrar que tinham a objetividade e a isenção necessárias para julgar o que estava ocorrendo.

Incontinência verbal

Costuma-se dizer que, na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima. Neste, como em outros casos, a verdade já havia sido sepultada antes da guerra ganhar espaço na mídia.

Já é público e notório que durante as investigações que levaram à prisão de Dantas e cia., os delegados responsáveis foram sabotados dentro da Polícia Federal por alguns de seus colegas. Portanto, parece evidente que esta guerra não começou quando apareceu na mídia. Havia começado muito antes disto. Este conflito seguiu rigorosamente o mesmo padrão das guerras convencionais, nas quais as hostilidades no campo de batalha são precedidas pelas trocas de acusações feitas enquanto cada um dos contendores começa a movimentar suas tropas a fim de tirar o melhor proveito possível da surpresa ao tomar a iniciativa ou se defender.

Sob o ponto de vista jornalístico, esta guerra verbal é mais rica do que as que ocorreram nos últimos anos. De fato, toda sociedade se mobilizou para intervir no conflito.

A Associação dos Advogados de São Paulo divulgou uma nota dizendo estar preocupada com o fato de o Judiciário estar sendo emparedado (e foi desautorizada por alguns de seus membros, que acreditam que quem emparedou o judiciário foi Gilmar Mendes). Procuradores e juízes manifestaram seu apoio à autoridade judiciária que mandou prender Daniel Dantas e afirmaram que estudariam a possibilidade de pedir o impedimento de Gilmar Mendes. Uma associação de juízes manifestou-se dizendo que era contra esta iniciativa.

À medida que os dias passavam, novos lances complicaram a disputa. O delegado da PF que era responsável pelo inquérito que levou Dantas à prisão se afastou ou foi afastado do cargo.

O governo atacou, recuou, atacou novamente. A oposição atacou, atacou e atacou, mas não conseguiu impedir a realização do pedido de impedimento de Gilmar Mendes, nem salvar a imagem pública do mesmo. Se tivesse ficado calado, o presidente do STF não teria comprometido sua posição de isenção. Agora, terá que suportar as conseqüências de sua incontinência verbal.

Réus sempre se dirão inocentes

Nos debates sobre o episódio, participaram os advogados de Dantas, Nahas e Pitta. Os defensores asseguram que seus clientes são inocentes e que o juiz que mandou prendê-los é suspeito. Alguns jornalistas apoiaram a PF, outros foram contra o uso de algemas. Outros, ainda, mostraram a história pregressa dos réus e deixaram que os leitores tirassem suas próprias conclusões.

Depois que várias peças haviam sido movidas no tabuleiro do Congresso e da mídia, FHC veio a público para dizer que havia uma guerra pelo controle do Estado. Disse isso como se não fosse um dos interessados e participantes da mesma. FHC fundou o PSDB e ainda é membro daquele partido político que faz oposição e deseja retornar ao poder.

Mesmo numa guerra de palavras, o leitor não deveria ser enganado. Cada um dos combatentes nesta guerra pertence a um campo e suas palavras devem ser mensuradas, considerando-se o papel que desempenham.

Os advogados defendem seus clientes e, portanto, não têm compromisso com a verdade, mas com a versão acreditam que os inocentará. Os réus, que correm o risco de voltar para a prisão, sempre se dirão inocentes, por mais culpados que sejam. Raramente vemos um culpado assumir publicamente a culpa. Se assumir a culpa, terá sido movido menos pelo arrependimento do que pelo desejo de obter alguma vantagem legal.

Integridade e independência do Judiciário

Os juízes e procuradores que apoiaram ou atacaram publicamente Gilmar Mendes se movimentam num terreno estranho às suas atividades. Juízes julgam processos e seu poder, que decorre da Lei, só dentro dos limites da Lei pode ser exercitado. Procuradores são fiscais da legalidade, mas a interpretação que fazem da Lei não é a única nem a última. As teses dos procuradores são confrontadas pelas dos advogados e ao final quem decidirá os processos serão os juízes. Mas os juízes que julgarão o pedido de impedimento de Gilmar Mendes serão os senadores (é o que determina a Constituição em vigor).

Todos os políticos da situação e da oposição têm seus próprios interesses, dentre os quais se destaca continuarem nos cargos que ocupam ou disputarem e ganharem outros. Portanto, eles dirão o que for mais conveniente para consolidar suas alianças e destruir as pretensões dos oponentes. Os jornalistas ocupam uma posição privilegiada, mas isto não quer dizer que não tenham suas preferências. Apesar de usarem uma retórica objetiva e supostamente isenta, os jornalistas também manifestam suas posições. Quando é submetido à análise detalhada, o texto jornalístico sempre revela quais são as preferências do autor. É por isto que pessoalmente prefiro os jornalistas que admitem publicamente suas posições àqueles que as disfarçam sob uma aparente objetividade e isenção.

Não discuto o direito de o juiz decidir segundo seu livre convencimento racional (isto lhe é garantido pela legislação), mas nenhum magistrado deve ter o direito de jogar a Lei na lata do lixo. E me parece que foi justamente isto que fez Gilmar Mendes ao não se considerar suspeito para decidir o pedido de liminar no habeas corpus de Daniel Dantas depois que já havia dado uma entrevista na TV defendendo o réu. Sou favorável ao pedido de impedimento de Gilmar Mendes e até mandei mensagem para todos os senadores manifestando minha posição. Salvar a integridade e a independência do Judiciário me parece mais digno e importante do que preservar este ou aquele mau juiz em seus quadros.

Silêncio voluntário ou consenso à força

Esta guerra de palavras é uma excelente oportunidade para o cidadão fazer uma profunda reflexão sobre a mídia e como a mesma pode e tem sido usada. Apesar de minhas limitações, procurei dar ao leitor alguns instrumentos para avaliar a importância e conteúdo das manifestações de alguns dos atores e seus campos específicos. Agora, deixo-o nas mãos do autor citado no princípio:

‘As estratégias discursivas dos diferentes atores, e em especial os efeitos retóricos que têm em vista produzir uma fachada de objetividade, dependerão da relação de força simbólicas entre os campos e dos trunfos a que pertençam esses campos confere aos diferentes participantes ou, por outras palavras, dependerão dos interesses específicos e dos trunfos diferenciais que, nesta situação particular de luta simbólica pelo veredicto `neutro´, lhes são garantidos pela sua posição nos sistemas de relações invisíveis que se estabelecem entre os diferentes campos em que eles participam. Por exemplo, o politólogo terá, como tal, uma vantagem em relação ao político e ao jornalista, pois se lhe concede mais facilmente o crédito da objetividade e tem a possibilidade de recorrer à sua competência específica, por exemplo, à história eleitoral, que lhe permite fazer comparações. Ele poderá aliar-se aos jornalistas, cujas pretensões à objetividade reforça e legitima. O que resulta de todas estas relações objetivas, são relações de força simbólicas que se manifestam na interação em forma de estratégias retóricas: estas relações objetivas determinam no essencial quem pode cortar a palavra, interrogar, responder fora do que foi perguntado, devolver questões, falar longamente sem ser interrompido ou passar por cima das interrupções etc., quem está condenado a estratégias de denegação (interesses, estratégias interessadas etc.), a recusas de respostas rituais, a formas estereotipadas etc. Seria preciso ir mais longe e mostrar como é que a apreensão das estruturas objetivas permite explicar o pormenor dos discursos e das estratégias retóricas, das cumplicidades ou dos antagonismos, dos `golpes´ desferidos e bem sucedidos etc., em resumo, tudo o que a análise do discurso julga que pode compreender a partir unicamente dos discursos’ (Pierre Bourdieu, O poder simbólico, Bertrand Brasil, 11ª edição, p. 56).

O debate é próprio da democracia. Para participar dele, necessitamos conhecer suas características, seus claros e escuros. A cidadania plena só é conquistada quando os cidadãos aprendem a avaliar o que cada debatedor pretende e o que tem realmente a oferecer. Discordo daqueles que dizem que o Estado de Direito esteve ou está em perigo. O perigo para a democracia é o silêncio voluntário ou consenso fabricado à força. Qualquer que seja o resultado desta guerra de palavras, o Estado de Direito será preservado e fortalecido.

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Advogado, Osasco, SP