Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mudanças no jornalismo local na Alemanha: da queda do muro de Berlim às reportagens sobre os refugiados

“A mídia perdeu a disposição de protegê-los a qualquer custo”, diz a jornalista sobre a cobertura de questões que envolvem imigrantes e refugiados na Europa. (Foto: arquivo pessoal)

Ulrike Schleicher é uma jornalista alemã. Atualmente, ela mora na cidade de Ulm e escreve sobre questões locais para o jornal Südwest Presse, um dos veículos regionais mais importantes do estado de Baden-Württemberg. Seu trabalho na imprensa inclui uma experiência internacional de quatro anos em Israel, onde viveu e alimentou a mídia alemã com informações sobre a vida local e as questões que envolvem os povos israelense e palestino.

Algumas de suas reportagens e entrevistas estão publicadas no Qantara, um site alemão que promove o diálogo com o mundo islâmico, bem como na Deutsche Welle e na Agência de Imprensa Alemã (DPA). Leia, a seguir, uma entrevista com Ulrike sobre o jornalismo em seu país e sua experiência profissional.

Enio Moraes Júnior – Do ponto de vista político, como a queda do Muro de Berlim, em 1989, interferiu no jornalismo alemão?

Ulrike Schleicher – Na época, eu não era jornalista, mas apenas estudante, por isso talvez não possa responder essa pergunta com propriedade. Mas, alguns anos depois da queda do Muro, tivemos reuniões e seminários com colegas do leste da Alemanha. Lembro que (nós, do lado oeste) estranhávamos as perguntas que eles faziam. Por exemplo: como cobrir política, o que era apropriado e o que era permitido. Eles geralmente eram muito cautelosos e atentos a essas questões. E eu me recordo ainda que eles passaram por momentos difíceis naquela época porque muitos jornais foram fechados e muitas pessoas perderam seus empregos.

EMJ – Você acha que as redes sociais mudaram o jornalismo na Alemanha nos últimos 20 ou 30 anos? Se sim, como você avalia essa mudança?

US – Claro que mudou. No passado, não tínhamos como reagir aos comentários do Facebook sobre um determinado assunto. Hoje, ao menos de vez em quando, refletimos sobre esses comentários ou cobrimos as reações do Facebook, a partir do relato que as pessoas trazem sobre um determinado tema. Mas há uma grande diferença entre o jornalismo online e o impresso: o primeiro é puramente focado no acontecimento. Este último tenta fornecer, além de informações básicas, o aprofundamento do assunto.

EMJ – Como você avalia a produção jornalística atual na Alemanha no que se refere à defesa e proteção dos imigrantes?

US – Em 2015, quando aconteceram as chamadas crises de refugiados na Europa, principalmente na Alemanha, os jornais foram inundados com cobertura sobre o tema. Todos os dias era possível ler sobre números, países de origem, motivos da migração, custos, para onde levá-los, como integrá-los à sociedade, humanismo etc. De certa forma, a cobertura era tão avassaladora quanto a quantidade de pessoas que chegava. Com o tempo, esse volume de matérias diminuiu. Um dos motivos foi certamente que a maioria das comunidades não tem mais problemas em termos de moradia ou educação, por exemplo. A situação como um todo melhorou. A cobertura em geral ainda inclui muita simpatia e empatia pelos refugiados. Há uma busca por uma abordagem positiva do tema e dos seus personagens. No entanto, ao mesmo tempo, a mídia perdeu a disposição de protegê-los a qualquer custo. Um bom exemplo é quando se trata de crimes. No passado, não diríamos ao leitor de onde vem o ladrão, o estuprador, o assassino. Agora, a mídia dá essa informação. E por quê? Porque a mídia foi e continua sendo acusada de proteger imigrantes e refugiados, embora alguns deles sejam realmente pessoas de má índole. Mas enfim, a disposição para protegê-los a qualquer custo mudou. No geral, a Alemanha ainda está disposta a ajudar as pessoas que precisam escapar da guerra. Mas acho que nunca vai ocorrer a mesma disposição que aconteceu em 2015. Você percebe essa atitude quando lê as notícias sobre a Europa e os refugiados.

EMJ – Apesar da mentalidade conservadora de algumas parcelas da população, seu país é considerado um dos mais liberais e progressistas do mundo. O que você acha da cobertura dos direitos humanos e das minorias na mídia alemã?

US – Eu diria que você pode comparar com a sua pergunta anterior. Em geral, ainda existe uma grande vontade de defender os direitos humanos em todo o mundo. Tínhamos uma série sobre Sinti e Roma, por exemplo. Cobrimos a vida difícil dos indígenas no Peru e muito mais. Tenho a sensação de que a cobertura dos direitos humanos perdeu importância devido às mudanças climáticas. E, claro, em tempos de Coronavírus, todo o resto fica em segundo plano.

EMJ – A Alemanha tem muitas particularidades regionais e locais. Como isso influencia o jornalismo alemão? Como funciona a imprensa local?

US – Moro em uma cidade localizada no estado de Baden-Wuerttemberg, mas a apenas 50 metros — do outro lado do rio Donau — fica o estado da Baviera. E às vezes temos que lidar com situações bizarras. Só para dar um exemplo, vale a pena focarmos no Coronavírus. Durante o confinamento que aconteceu durante a primavera, não era permitido aos cidadãos da Baviera fazer caminhadas acompanhados de amigos, apenas familiares podiam andar juntos. Mas em Baden-Wuerttemberg, as pessoas podiam andar com alguém que não fosse da família, não importava quem. Outra situação: as lojas de material de construção da Baviera foram fechadas, enquanto aqui permaneceram abertas. Adivinha o que aconteceu? Os vizinhos cruzaram a “fronteira” para desfrutar da liberdade do estado de Baden-Wuerttemberg. Quando você cobre isso, tem que explicar muita coisa e entender as peculiaridades do federalismo alemão. Sobre a segunda parte da sua pergunta: cobrimos a política local, a economia, a administração, as questões sociais relacionadas à construção de moradia, ruas, ferrovias. Tentamos apresentar as pessoas que moram nas cidades, tanto nativos como estrangeiros, bem como os oprimidos e aqueles que estão comprometidos em apoiar os outros. Cobrimos as celebrações oficiais e falamos sobre tradição e inovação. Na verdade, tentamos refletir sobre a vida diária em uma comunidade com todos os seus diferentes aspectos.

EMJ – Como você avalia a formação de jornalistas na Alemanha, considerando o que tem visto tanto na sua geração quanto na atual geração de jornalistas?

US – Depois de terminar um estudo, temos dois anos extras de educação direto na Redação de um jornal, envolvendo tanto questões da prática como da teoria do jornalismo. Eu diria que, levando-se em conta a enorme responsabilidade que os jornalistas têm, isso é bastante apropriado. Entretanto, hoje, o foco da educação está mais no jornalismo online, o que eu pessoalmente lamento. Não que eu queira voltar no tempo, mas as notícias cobertas de forma rápida nem sempre recebem o melhor tratamento e apuração. Alguns assuntos não podem ser contados em seis frases, eles precisam de mais espaço. Espero que, no futuro, os jornais impressos sobrevivam e as pessoas ainda se interessem em ler histórias de fundo.

Esta entrevista faz parte de uma série sobre jornalismo no mundo, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor — Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: EnioOnLine.