Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As entranhas expostas do golpe

[Em 1º de abril de 1964, quando os militares tomaram o poder no país, José Serra, 22, era o presidente da UNE. O texto publicado nas próximas páginas é um trecho editado de “Cinquenta Anos Esta Noite”, a sair pela Record em junho, no qual o político narra, em tom pessoal, a escalada dos eventos que levariam ao golpe.]

– Presidente, nós defendemos que o pedido de estado de sítio seja retirado. Vai suprimir as garantias constitucionais e fortalecer a direita. Vai acabar se voltando contra o povo, contra seu governo e contra o senhor mesmo.

– Olha, jovem, tu não precisas te preocupar, porque, antes de vir aqui, já tomei providências para retirar. Não deixem essa notícia circular, pois vou anunciar depois de amanhã. Acho bom vocês continuarem falando contra daqui até lá. Direi que atendi a seu pedido. Mas o estado de sítio não era para agredir vocês, não era contra o povo, não. Ao contrário. Eu sei das dificuldades que tenho. Agora vou lhes dizer uma coisa: eu não vou terminar este mandato, não. Não chegarei até o fim.

O presidente era João Goulart, e o jovem, eu mesmo, numa tarde de domingo, 6 de outubro de 1963, no apartamento de um familiar de Jango, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Estavam lá uns seis ou sete dirigentes da Frente de Mobilização Popular (FMP).

Eu era presidente da UNE, e o então deputado Leonel Brizola, ao abrir a reunião sigilosa, sugeriu que eu expusesse os motivos de nossa rejeição ao estado de sítio que Jango solicitara ao Congresso.

Na FMP, havia sempre uma tensão entre duas alas: a mais brizolista e radical e a que girava em torno do Partido Comunista Brasileiro e do então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, tida como mais moderada. O PCB era a força hegemônica da Frente do Recife, que elegera Arraes prefeito e depois governador. Dentro da FMP, de certo modo, a UNE era tida como não alinhada.

João Goulart estava sentado numa cadeira confortável, com uma perna esticada num banquinho, e falava sem focalizar bem os interlocutores nos olhos. Parecia cansado, mas foi cordial até mesmo quando um dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) Demístocles Batista, o Batistinha, poderoso dirigente dos ferroviários, para constrangimento de todos, entregou-lhe uma cópia da carta-testamento de Getúlio, insinuando que não a estava respeitando.

A partir do episódio do estado de sítio e da reunião com Jango, senti que o governo não iria se aguentar. Fiquei assombrado ao ouvir do presidente da República, conformado, uma convincente previsão pessimista sobre o destino do seu mandato. Não parecia fazer chantagem emocional. Em nenhum momento mais, nos seis meses que transcorreriam até o golpe, essa ideia me abandonou.

Depois da conversa, fomos para o lanche, no outro lado da sala, de pé, num ambiente mais descontraído, com sanduíches frios, refrigerantes e um enjoativo vinho branco alemão, que era moda na época. Bebida destilada, nem pensar, não aparecia nesse tipo de reunião política. Enquanto bebia o vinho, Jango me puxou para o lado e disse, em tom confidencial, algo que me deixou um tanto sem graça: “Sabe, Serra, os militares vivem me dizendo que a tua UNE e tu mesmo mereciam umas boas palmadas, mas eu defendo vocês. Sabias? Eu te defendo. Sei o que me custa. Vocês devem se cuidar”.

Exceção

O lance do estado de sítio fora ousado. O governo enviara o projeto ao Congresso dentro do que previa a Constituição. Na Câmara, a relatoria ficou nas mãos do PSD –partido de “centro” que, em tese, apoiava Jango e era o maior do Parlamento–, com o experiente deputado Vieira de Mello, que anunciou um projeto substitutivo que esterilizaria a medida. Mas Jango tinha o propósito de implantá-la de fato, abrindo o caminho para um regime de exceção, nominalmente transitório.

O governo federal interviria na Guanabara e em São Paulo, afastando, respectivamente, Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, então governadores desses Estados. Se não acolhesse o projeto na forma original, o Congresso seria posto em recesso, e seriam convocadas eleições para dali a seis meses, de vereador a presidente. Jango assegurava que não se candidataria. Nesse ínterim, seria preparada uma reforma constitucional –na qual estariam previstas as “reformas de base”, termo criado pelo deputado e ex-ministro San Tiago Dantas, e que viera para ficar–, a ser submetida a plebiscito.

A proposta do estado de sítio, que se completaria com relatos paralelos, fora transmitida alguns dias antes aos dirigentes da FMP, Brizola presente, numa reunião tarde da noite, à qual compareceram dois vice-presidentes da UNE, Marcelo Cerqueira e Duarte Pereira. Eu estava na Bahia, num comício que comemorava o décimo aniversário da Petrobras.

Ao lado do então deputado Almino Affonso, ex-ministro do Trabalho de Jango e o parlamentar mais brilhante e respeitado do PTB, eles deram opinião claramente discordante, argumentando que aquele processo desembocaria na quebra da legalidade democrática, num golpe. Nessa noite, Affonso e os dois estudantes pautaram a FMP, inclusive Brizola, que fora o portador da proposta, sem emitir um juízo de valor claro sobre ela, mas mostrando certa simpatia.

Jango não tinha personalidade autoritária e estava longe de ser um inveterado golpista, à moda de Carlos Lacerda. Sabíamos que tivera chance de promover golpes no passado não distante, talvez em condições mais propícias para si, quando o general Amaury Kruel era chefe da Casa Militar e depois ministro da Guerra, e o general Osvino Alves, comandante do poderoso Primeiro Exército, do Rio de Janeiro. Mas não o fizera.

Não creio mesmo que Jango tivesse atuado de forma entusiasmada no roteiro do regime de exceção, via estado de sítio. Mas embarcara nele. Pelo nosso lado, achávamos –e eu estava convencido disto– que, se o presidente forçasse a marcha do projeto, perderia rapidamente o controle e abriria o caminho para uma ditadura militar de verdade. Suprimir as garantias e liberdades constitucionais e substituir governadores de três Estados importantes por generais resultaria no quê? Pior: tudo isso acabaria sendo feito com o nosso apoio, caso embarcássemos no início da aventura.

Posição

Nos dias seguintes àquela reunião na madrugada, depois de uma breve hesitação, os diferentes integrantes da FMP foram tomando posição contrária à proposta do estado de sítio.

Mas ela não deixou de prosperar só por causa disso, nem por causa do Congresso –ou seja, pela oposição da esquerda e do centro–, mas também porque Jango não encontrara o suporte militar necessário. Tentara pôr seu golpe “preventivo” em marcha, do seu jeito hesitante, e não o conseguira.

O principal indicador a esse respeito foi o fato de ele, naqueles dias, ter acionado (ou ter dado sinal verde para tanto) seu esquema militar para prender o governador da Guanabara, numa operação de paraquedistas, que fracassara.

Lacerda, provocador como só ele, havia dado uma entrevista ao jornal “Los Angeles Times” dizendo que “os nossos amigos americanos não deveriam dar nenhuma ajuda ao governo criptocomunista de João Goulart”, acrescentando que o presidente não terminaria o mandato. Mas era gravíssimo que o dispositivo militar de Jango tivesse tentado a prisão e sintomático que, de tão bisonho, não tivesse conseguido. A percepção de que, à sua maneira, Jango preparava-se para sair, confirmou-se diante da lógica dos fatos nos meses seguintes. Ele não deixaria a vida, como Getúlio, mas o cargo, para entrar na história como um líder popular injustiçado. Ficaria em sua fazenda, em São Borja, e, quem sabe, seria um dia chamado de volta.

Testes

Antes de mudar para o Rio e assumir o cargo na UNE, em julho de 1963, não houve tempo para grandes treinamentos. Tive de aprender fazendo. Já no primeiro mês, houve dois testes difíceis e um evento traumático em Brasília, que marcou o começo do fim do governo de João Goulart.

O primeiro teste foi uma CPI na Câmara dos Deputados sobre a UNE, a subversão e o pretenso ouro de Moscou, que, segundo os detratores da entidade, financiaria o movimento estudantil. Atravessei um dia inteiro de depoimentos e interrogatórios, da manhã até a noite, enfrentando parlamentares experientes, cujo único propósito parecia ser o de garantir manchetes escandalosas à grande imprensa.

Outro teste foi o comício em homenagem a Getúlio Vargas, pelo nono aniversário de sua morte, na Cinelândia, no centro do Rio, quando fiz o discurso mais desassombrado de minha vida. A fim de que eu não falasse no início, quando a audiência é sempre mais dispersiva, atrasamos a chegada ao palanque caminhando entre a multidão, em vez de entrar por trás. Mas erramos o cálculo, o atraso foi excessivo e, de paletó e gravata, como era costume na época, acabei fazendo o último discurso antes do pronunciamento de Jango.

Num comício daquele tamanho, não dava para ler nenhum texto; por isso, escrevi e memorizei cada frase. Minha experiência no Grupo Teatral Politécnico ajudava. Fui educado, mas contundente.

Falei ao lado de Jango e dos seus ministros militares, que estavam no palanque. Lembro-me bem do general Jair Dantas, de uniforme, óculos de aros grossos, baixa estatura, expressão cordial. Comecei dizendo que estaríamos ao lado do presidente da República enquanto ele estivesse do lado do povo. Critiquei a possível nomeação do general Amaury Kruel para o Segundo Exército, de São Paulo, dizendo que tinha vocação golpista – aliás, quando ministro da Guerra, conspirara nesse sentido. E agora ia para o Segundo Exército?

Acusei o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, um dos nossos alvos preferenciais –creio que, nessa matéria, só perdia para Lacerda–, de interferir em assuntos internos da política brasileira e manifestei oposição veemente à ideia, que já circulava no governo Jango, de intervenção federal em São Paulo e na Guanabara. Disse que Adhemar e Lacerda eram golpistas, mas que o remédio para combatê-los não era quebrar a legalidade. Como a tese da defesa das regras do jogo democrático não combinava com a imagem que a imprensa tinha da UNE, esse pedaço do discurso não apareceu nos jornais.

Acabei criticando até o organizador do comício, Gilberto Crockat de Sá, assessor de Jango, presente ao palanque, acusando-o de pretender dividir o movimento sindical. Um grande foco de ataque foi o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), entidade privada de extrema direita, que organizava campanhas anticomunistas e financiara candidatos a deputado na campanha eleitoral do ano anterior, quando gastou, a preços de hoje, mais de US$ 40 milhões só em dinheiro da CIA –no câmbio livre, uma fortuna para a época.

Esse discurso esfriou nossa relação com Jango, que começara bem logo após minha posse, quando ele nos convidara para um jantar informal e acolhera de forma entusiasta nossas demandas sobre a educação: apoio às campanhas de alfabetização, que fazíamos a sério, por um fim à vitaliciedade da cátedra universitária e dobrar a oferta de vagas no ensino superior federal. Levei os números: havia menos de 100 mil universitários no Brasil, e a taxa de escolarização bruta era de apenas 1%.

Rebelião

No começo de setembro de 1963, houve uma rebelião de sargentos e suboficiais da Marinha e da Aeronáutica em Brasília. Por algumas horas, isolaram a capital, ocuparam a praça dos Três Poderes, apossaram-se do Ministério da Marinha, detiveram oficiais e os presidentes da Câmara e do STF.

A insurreição não deu certo, mas seu impacto político e psicológico adverso para o governo de Jango foi imenso: deu a impressão de que, sob sua chefia, o Estado corria o risco de naufragar.

Alvo

Após o “affaire” do estado de sítio, fez-se uma reunião da FMP em Brasília, na qual o principal alvo foi o fim da “política de conciliação” de Jango, divisa comum a todas as forças que a integravam. Aprovou-se uma agressiva declaração formal de independência em relação ao governo. Na minha cabeça, o presidente iria cair e nós também cairíamos, mas que não caíssemos como janguistas! Eu não apostava na ideia de uma saída negociada para a crise brasileira – não por princípios; porque não acreditava que fosse viável.

De outro ângulo, havia certa lógica no gesto da ruptura, que agradava ao CGT, à Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), a Brizola e a Arraes: pressionar Jango para que recompusesse seu ministério com figuras representativas da Frente. Mas, então, o efeito prático da reunião foi evidenciar que Jango estava mais isolado do que nunca.

A reunião da FMP pela “ruptura” realizou-se numa sala fechada no Congresso. Num intervalo, perguntei ao deputado Neiva Moreira, sempre irreverente, o que significavam aquelas tachinhas espetadas num mapa do Brasil pregado à parede. “Não são nada, não. Eu é que pus e vou alimentando, só para assustar o pessoal da UDN que passa por aqui. Eles vão contar pro Bilac que viram os focos da futura guerra revolucionária…”

O deputado Bilac Pinto, prócer udenista mineiro, era precisamente o autor da tese de que havia uma guerra revolucionária em preparação no Brasil –tese que me parecia ridícula, mas que percorria jornais, quartéis e reuniões de civis assustados. Ele fazia reiterados discursos delirantes sobre o tema, preparados, segundo acusávamos, pelo Ibad e pela CIA e divulgados com grande cobertura.

No entanto a ninguém ocorreu reprovar a brincadeira de Neiva Moreira. Isso, de fato, mostrava uma atitude em maior ou menor medida compartilhada por todos: assustar e intimidar os adversários. Esse era um comportamento padrão das esquerdas e de suas entidades da época, sem que a intimidação, como na brincadeira das tachinhas, implicasse qualquer tipo de ameaça real. A UNE e eu próprio não éramos pródigos nessa matéria. Mas havia uma estratégia implícita: “Quanto mais assustarmos o centro e a direita, mais eles cederão nas reformas” –na linha nada original de “entregar os anéis para não perder os dedos”.

Conspiração

Uma coisa era certa: a partir da tentativa do estado de sítio, as forças cujo principal braço político era a UDN lacerdista caminharam mais firmes e depressa na conspiração para derrubar Jango. Não iriam perder a oportunidade. Havia 18 anos tinham contas a acertar com o chamado “varguismo” e suas derivações, associações ou fantasias ao longo do tempo (república sindicalista, socialismo, comunismo etc.). Haviam perdido pelo menos cinco oportunidades de fazê-lo.

Depois que a ditadura do Estado Novo caiu, no pós-Guerra, Eduardo Gomes, candidato daquelas forças a presidente, foi derrotado pelo marechal Eurico Dutra, apoiado por Getúlio. Na eleição seguinte, de 1950, ganhou o ex-ditador. Depois que ele foi levado ao suicídio, seu vice, Café Filho, cooptado pela direita, acabou sendo derrubado, em pouco mais de um ano, pelo seu próprio ministro da Guerra, general Henrique Lott –Café Filho se preparava para impedir a posse de Juscelino, do PSD, eleito com o apoio do PTB de Vargas, com Jango como vice.

Com Jânio Quadros, as tais forças ganharam a eleição de 1960, mas perderam com a estapafúrdia renúncia do presidente aos sete meses de governo, sem falar da frustração que já sofriam com a “política externa independente” de Jânio. Tentaram impedir a posse de Jango, mas Brizola, com seu movimento a partir do Rio Grande do Sul, Estado que governava, evitou esse propósito.

Também depois do episódio do estado de sítio, o arco das alianças para derrubar Jango foi sendo ampliado, até incluir, no começo de 1964, figuras “de centro”, como o então governador de Minas, Magalhães Pinto, que era da UDN e tinha ambições presidenciais –por isso mesmo, adversário de Lacerda e mais próximo a Jango.

Nas últimas semanas de março, a aliança antijanguista já abarcava a maioria do PSD e incorporava intelectuais e jornalistas que, nos dias seguintes ao 1º de abril, viriam a ser opositores das arbitrariedades e da repressão, como foi o caso da equipe do “Correio da Manhã”.

Diga-se que, em resposta à mobilização da esquerda, já tinha sido organizada uma “rede democrática” desde o último trimestre de 1963, juntando tudo o que se dispunha em matéria de jornais, rádio e TVs, para contrapor-se aos (poucos) jornais e emissoras ligadas ao governo e a Brizola.

Demissão

Um fato para mim ilustrativo, embora até hoje subestimado, da falta de empenho de Jango em melhorar a sorte de seu próprio governo foi a demissão, em dezembro de 1963, do ministro da Fazenda, Carvalho Pinto, ex-governador de São Paulo, político discreto, que inspirava confiança no empresariado e na imprensa.

A rápida deterioração da economia no período que se seguiu ao naufrágio do Plano Trienal –lançado no início de 1963, sob a condução de San Tiago Dantas e Celso Furtado, ministros da Fazenda e do Planejamento, não comprometera sua figura, pois era claro que a herança recebida por ele era a pior possível.

Houve pretextos para afastar o ministro –principalmente a postulação de Brizola a ocupar seu cargo, que não tinha o apoio unânime da FMP e era rejeitada intra ou extramuros pelo CGT, pela UNE e por deputados da FPN.

Eu me perguntava se a postulação do ex-governador do Rio Grande do Sul era para valer. Se dependesse de suas falas e entrevistas, parecia que sim. A primeira vez na vida que contemplei séries e curvas exponenciais de expansão de moeda foi assistindo aos discursos de Brizola naquele período, gerando, aliás, apreensão em todos, pois ilustrava o descontrole da economia. Nenhum homem público com grande audiência apresentava uma visão tão pessimista da economia como ele.

A razão determinante para a remoção do ex-governador de São Paulo, porém, não foi a pressão do cunhado de Jango, e sim o relativo prestígio de que o ministro desfrutava, que o punha na condição de presidenciável. Entre muitas especulações, começava-se a falar até da dobradinha Carvalho Pinto-Arraes para 1965, o que eu mesmo considerava uma das boas hipóteses naquelas circunstâncias.

A demissão do ministro da Fazenda abalou de vez a confiança do empresariado no governo em relação à estabilidade da economia. A escolha do novo ministro, Nei Galvão –que, apesar de ocupar a presidência do Banco do Brasil, era considerado inexpressivo–, consolidou essa percepção.

Confronto

Jango não cedeu às pressões para formar um gabinete ministerial nacionalista e popular, digamos assim, mas, no primeiro trimestre de 1964, foi mergulhando na estratégia de confronto apontada, precisamente, pelo roteiro da FMP.

Em janeiro, Jango regulamentou a Lei de Remessa de Lucros do capital estrangeiro, aprovada no Congresso em 1962, mas, desde então, pendente desse decreto. A demora era explicável, pois a regulamentação da lei poderia agravar os problemas do balanço de pagamentos, caso afugentasse o ingresso de capitais. Essa, no entanto, não era nossa preocupação. O decreto foi assinado em Petrópolis, sob nossos aplausos. Fomos recebidos depois pelo presidente, que atendeu à reivindicação de indicar um estudante, no caso o vice-presidente para Assuntos Educacionais da UNE, Duarte Pereira, para integrar o Conselho Federal de Educação. Reafirmou, também, a decisão de duplicar as vagas no ensino superior.

Em seguida, o governo programou grandes manifestações de massa, organizadas em conjunto com o CGT para março e abril, a começar pelo comício da Central do Brasil, no Rio, na noite de 13 de março, sexta-feira. Ficara claro que Jango e o pessoal do CGT não eram supersticiosos. Mas o ato fazia parte de uma sequência de manifestações pelo país, como o mote das reformas e da pressão sobre o Congresso para que as acolhesse.

Àquela altura, Jango já se abraçara aos setores da FMP mais ligados ao PCB. Para a direita, essa programação representava uma declaração final de guerra. Para o centro, um empurrão a que abandonasse o governo. Para a esquerda como um todo, uma vitória contra a conciliação.

Comício

Nunca soube avaliar o número de pessoas presentes a um grande comício ou passeata. E, naqueles tempos, nem imprensa nem PM se dedicavam a esse cálculo. Mas nunca vira tanta gente junta. Jango fez o melhor discurso de sua vida. Ele estava numa espécie de púlpito, tendo ao seu lado direito, no meu ângulo de visão, sua mulher, Maria Tereza, jovem e deslumbrante. Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, atrás, buzinava coisas a seu ouvido, quase aos gritos. Do lado esquerdo, Osvaldo Pacheco, comunista histórico e o mais carismático dirigente do CGT. No fim, ao cumprimentá-lo, ouvi: “E aí, rapaz, desta vez tu gostaste, não?”.

João Goulart anunciou a encampação das refinarias privadas de petróleo existentes, falou em acabar com a vitaliciedade da cátedra universitária, de congelamento de aluguéis, da ampliação do direito de voto, e apresentou o decreto que permitia desapropriar, para fins de reforma agrária, terras às margens das rodovias federais.

Leonel Brizola e Miguel Arraes não tinham sido formalmente convidados para o comício, mas apareceram. Como o Exército controlava o ingresso na área do palco, houve um leve empurra-empurra na barreira existente, mas ambos falaram, Brizola de forma longa, especialmente radical, propondo fechar o Congresso ou passar por cima dele, via plebiscito, sob imensos aplausos. Diga-se que essa ideia do plebiscito não era consensual na FMP e, nos meus discursos estudantis, jamais a defendi. Achava que ia dar uma grande confusão, que acabaria criando o clima para golpes e contragolpes. Nem avaliava, e aí ficaria mais alarmado, o efeito que as incertezas decorrentes teriam sobre a inflação, que já era desabrida, e a crise econômica. O índice, em 1963, chegara perto de 90%, e o crescimento per capita da economia fora de 2% negativos.

Jango preocupava-se com que eu repetisse, no meu discurso, o tom e o conteúdo do que eu fizera na Cinelândia, no aniversário da morte de Getúlio. De fato, o dirigente do CGT, Hércules Correia, que monitorava o revezamento na tribuna, até que tentou cumprir a tarefa: “Vou te anunciar, você dá boa noite, diz uma frase de saudação, recebe as palmas e encerra, Serra. Encerra!”.

Os aplausos foram demorados e intensos. Movi meus ombros para os lados, insinuando a Hércules Correia o que aconteceria se alguém tentasse me interromper. Além da falta de convicção, ele não tinha de fato como intervir na frente daquela multidão. E fiz meu discurso, já memorizado, em toda sua extensão. Mas minha ênfase foi diferente daquela da Cinelândia e da que a própria imprensa registrou: centrei-me na denúncia das articulações golpistas da direita, no apoio ao governo legalmente constituído contra o golpe e no chamado à mobilização democrática. Estava convencido de que o golpe viria logo, naquelas semanas, sobretudo depois daquela noite. Naturalmente, pedi também a encampação das refinarias privadas, logo anunciada por Jango, junto com o decreto da Supra.

Fantasia

O comício aqueceu, de um lado, as expectativas de ascensão do movimento de massas; de outro, acelerou a trama do golpe e assustou ainda mais os grandes jornais –que já tinham formado aquela “rede da democracia” no final do ano anterior– e as classes médias urbanas, todos temerosos de um regime comunista, de uma república sindicalista, ou seja lá o que fosse. Do ponto de vista real, uma fantasia. Do ponto de vista da mobilização para o golpe, um fator poderoso.

O aquecimento foi até a fervura quando, dias depois, o governo enviou ao Congresso a mensagem presidencial do ano, que reiterava e ampliava, em pontos sensíveis, medidas e iniciativas apresentadas no discurso original. Primeiro, encampava a tese de Brizola sobre o plebiscito em torno de emendas constitucionais. Segundo, permitia a desapropriação rural com títulos públicos reajustáveis na forma da lei (mais ou menos como é hoje), eliminando a exigência de pagamento prévio em dinheiro. Terceiro, estabelecia a possibilidade da delegação de poderes para o Executivo, eliminando o parágrafo segundo do artigo 36 da Constituição, que a proibia e foi tratado de forma depreciativa no texto da mensagem. Quarto, introduzia um dispositivo constitucional garantindo que “são elegíveis os alistáveis”.

O plebiscito e a delegação de poderes selava, para os adversários e liberais-democratas, a ideia da democracia autoritária –ou, nas palavras do Ibad, “o caminho do totalitarismo”–, associada ao enfraquecimento do Congresso e à permanente agitação popular. Isso era inaceitável para o PSD e para a UDN. E a elegibilidade dos alistáveis abria caminho –de forma paranoica ou não– para a possibilidade de reeleição do próprio Jango em 1965 ou da candidatura presidencial de Brizola, impedida pela Constituição vigente em virtude de ser cunhado do presidente. Até os que eram crianças na época se lembrarão das pichações de partidários do ex-governador gaúcho dizendo “Cunhado não é parente, Brizola para presidente”.

Nem Jango nem Brizola acreditavam muito em tal possibilidade. Queriam assustar os adversários e foram bem sucedidos nisso. As questões de elegibilidade mexiam com todos os políticos que só pensavam na Presidência: Juscelino, Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto. De mais não se precisava, como pretexto, para unir politicamente as forças de vários matizes que se opunham a Jango.

O temor era tal que, em São Paulo, seis dias depois, incentivada pelo comício na Central do Brasil, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, promovida para dar respaldo ao golpe, reuniria mais gente que o comício. Na sua maioria, pessoas de baixa classe média para cima, que não haviam sido levadas por sindicatos e em cujas fileiras quase não se encontravam estudantes. A grande maioria de boa fé democrática e religiosa, tementes do belzebu comunista que iria implantar a ditadura do proletariado, o materialismo e a perseguição aos seguidores de Cristo.

As entidades mais visíveis eram as de senhoras e a TFP, que tiveram apoio em dinheiro da CIA ou coisa parecida, mas não foi por isso que atraíram tanta gente. As palavras de ordem, para a multidão, estavam bem feitas e soavam democráticas. “Reformas, sim, mas dentro da Constituição. Senão, não!”

No Rio, poucos dias depois, fomos a uma reunião informal com o CGT: os marinheiros da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, reunidos no auditório de um sindicato, declararam-se em assembleia permanente. Para mim, surpresa total. Suas reivindicações corporativas iam do direito ao voto à possibilidade de se casarem e de vestirem roupas civis, sem falar nos pedidos por melhores salários e alimentação. Independentemente de qualquer coisa, tratava-se de uma verdadeira sublevação, que somaria oficiais centristas e legalistas das três Armas na ofensiva do golpe. Decidi não comparecer.

Os fuzileiros navais foram enviados para reprimir os manifestantes, mas, chegando lá, desistiram. Por isso, o seu comandante, Cândido Aragão, janguista, foi afastado pelo ministro da Marinha, Sílvio Mota. A falta de cobertura da Presidência, porém, levou Mota a demitir-se. No seu lugar, Goulart nomeou um almirante cujo nome fora reivindicado pelos revoltosos, Paulo Mário Rodrigues, tido como de esquerda, que imediatamente concedeu anistia e renomeou Aragão. E tudo acabou em desfile comemorativo pelas ruas do Rio de Janeiro, em plena Sexta-Feira Santa. Na passeata, cruzaram com o almirante Aragão, erguendo-o nos braços. Em matéria de esforço para somar contra si a maioria dos oficiais das três Armas –devido aos abalos na hierarquia e na disciplina militar– e de provocar a reação negativa às reformas de base, Jango não poderia ter feito nada mais eficaz e definitivo.

Paralelamente, o presidente se recusava a nomear um novo ministro da Guerra, apesar de o titular, general Jair Dantas, estar internado para uma cirurgia. Aliás, era grampeado pela CIA dentro do seu quarto de hospital. Assim, o ministério militar mais importante foi mantido acéfalo, no meio de todas essas crises e das conspirações coordenadas pelo chefe do Estado-Maior do Exército, general Castelo Branco. Após a marcha da família, ele emitira um documento reservado em favor do golpe, fato então conhecido pelo governo e até por nós, mas não fora punido.

Indo mais longe, na antevéspera da consumação do golpe –cuja data real é 1º de abril, não 31 de março–, Jango discursou para sargentos e suboficiais do Exército na sede do Automóvel Clube do Rio de Janeiro. Presente à mesa, também, o líder dos marinheiros, cabo Anselmo. Junto com diretores da UNE, ouvi o discurso dentro de um táxi, parado na avenida Delfim Moreira, no Leblon. Nossa conclusão óbvia foi, de duas, uma: ou Jango estava se despedindo do governo ou iria de fato “tomar o poder”. Tudo em questão de horas. Claro que a intuição e a razão apontavam para a primeira hipótese.

Nesse dia, aliás, as hostes policiais e parapoliciais lacerdistas já estavam nas ruas, prendendo dirigentes do CGT em sua própria sede –outra demonstração do alheamento, do despreparo e até da ingenuidade das esquerdas em matéria de segurança. Não aderia à violência nem tinha um plano para se proteger dela.

Violência

Apesar das teses do udenista mineiro Bilac Pinto sobre a guerra revolucionária, demonstrações de violência mesmo só existiam do lado da direita.

No Congresso da UNE em que fui eleito, em Santo André, grupos paramilitares metralharam o estádio que abrigava os trabalhos e soltaram bombas de gás lacrimogêneo no plenário. No ano anterior, em Quitandinha, também houvera metralhadoras e bombas. Numa reunião no anfiteatro do Mackenzie, em São Paulo, atiraram ácido no ministro da Educação, Paulo de Tarso. O prédio da UNE sofria periódicas rajadas de metralhadora nos primeiros meses de 1964.

O fato é que não havia exercícios de violência de nosso lado nem preparativos nesse sentido. E, se essa ideia existisse, não haveria como materializá-la.

Para as classes médias que deram suporte ao golpe nas marchas de São Paulo e do Rio e nas ruas de Belo Horizonte, havia uma motivação adicional para o apoio: o medo da cubanização do Brasil e da guerra revolucionária que a implantaria. Esse é um mito que ficou. Insisto: nada mais fantasioso do que supor que o Brasil pudesse virar uma Cuba ou que a esquerda, em 1963-64, estivesse se armando. Os famosos “grupos dos 11”, que o pessoal do Brizola começara a cadastrar, com vistas a criar um movimento nacionalista-revolucionário, já eram insignificantes como instrumento político. Imaginem, então, para possíveis enfrentamentos armados.

Na UNE da época, uma entidade forte e independente, nem se cogitava do tema. Eu nunca ouvi nada a esse respeito. Se me falassem em coquetel molotov dentro da sede, acharia que se tratava de alguma bebida favorita do ex-chanceler de Stálin. As Ligas Camponesas de Francisco Julião, que haviam tentado, com apoio logístico e financeiro cubano, montar guerrilhas dois anos antes, tinham fracassado. Depois disso, só faziam ameaças, vendendo um peixe que em absoluto não tinham. E o seu braço político, pequeno e desorganizado, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), era isolado de todos os setores mais importantes da esquerda.

Havia, sim, o famoso dispositivo militar de Jango, capaz, em tese, de deter um golpe ou de promovê-lo. Mas tudo só em tese, como se viu nesses casos e se constataria no golpe de 1º de abril, quando aquele dispositivo sumiu. A retórica servira para assustar a classe média e conferir verossimilhança à farsa golpista.

Rumores

– General, estou indo para o Amazonas, mas há muitos rumores de movimentações golpistas. É claro que o senhor os ouviu. Tenho dúvida se viajo ou não.

– Pode ir, meu jovem, não tem problema. Quase todos esses rumores são falsos. Os que não são se referem a iniciativas que estão sob controle.

Foi precisamente com o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar da Presidência e coordenador do “dispositivo”, que começou minha história na fase final do golpe.

Na quinta-feira da Semana Santa, eu ia para Manaus, onde a UNE promovia um seminário sobre os problemas da Amazônia. De lá, iria a Belém, onde se realizaria outro encontro, com estudantes de toda a América Latina. Cruzei com o general no Galeão.

Mais do que sua resposta formal, o que atenuou minha inquietação foi ver o comandante do “dispositivo” em trajes esportivos, embarcando numa boa para o descanso da Semana Santa. Como era possível isso? O presidente pescando no Sul, o ministro da Guerra no hospital e o chefe da Casa Militar indo repousar?

Minha viagem duraria muito pouco, entretanto. Cheguei a Manaus à noitinha, jantei com os congressistas, de manhã visitei o mercado, onde comprei um par de tartaruguinhas e filhotes de jacarés –eram tempos pré-ecológicos–; mas, antes de abrir o seminário, tive de retornar por causa da intensificação dos rumores de golpe, que não perturbavam o general Assis.

No Rio, na segunda-feira à noite, dia 30 de março, depois de ouvir o discurso de Jango no Automóvel Clube, decidimos ir até a sede dos Correios a fim de obter informações. O diretor-geral, coronel Dagoberto Rodrigues, era homem de confiança de Jango e de Brizola.

Nessa noite, descobrimos que existia, nos Correios, um sistema de escuta telefônica, e o coronel já sabia de movimentos de tropas em Minas Gerais. Viria para o Rio uma tropa comandada por um general de poucas estrelas, Mourão Filho.

De volta à sede da UNE, aprovamos uma nota denunciando o golpe e chamando à resistência. Decidimos deslocar partes da diretoria para os Estados onde haveria maior resistência, reduzindo também o risco de que todos fôssemos presos juntos.

À tarde e à noite do dia 31 de março, fui duas vezes ao Palácio das Laranjeiras, uma vez com Marcelo Cerqueira, outra com Betinho [Herbert José de Sousa]. Queríamos que o governo resistisse. Lá dentro, o general Assis Brasil disse, para nossa incredulidade, que estava tudo bem. Cruzamos com Juscelino, com quem tínhamos relações amistosas: ele nos disse que a situação era muito grave, sem dar nenhum sinal do que conversara com Jango. O general Peri Bevilacqua, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, entrou e saiu com ar de quem encaminhara medidas salvadoras. Como depois se viu, era um documento pedindo a rendição de Jango, ou seja, ele permaneceria, mas sob tutela militar, e reprimindo o CGT, a UNE e os comunistas.

Jango pode ter errado muito nos anos anteriores, mas, nessa noite, acertou ao recusar aderir ao golpe militar com ele à frente. Nem duraria no cargo. Numa escrivaninha pequena, oitocentista, redigi uma nota conclamando a greve geral dos estudantes, a qual mal chegou à imprensa, mas foi divulgada nas emissoras de rádio que ainda funcionavam do nosso lado.

Por volta das dez da noite, fui à sede da UNE, onde havia uma assembleia permanente, para dar informações sobre a situação. A reunião era no teatro do Centro Popular de Cultura, que seria inaugurado naquele mês. Não fora ainda pintado, e o cheiro da madeira pura e fresca era agradável, destoando da feiura das minhas preocupações sobre o dia seguinte. Quando cheguei, o general da reserva e historiador –um homem respeitável, ligado ao PCB– Nelson Werneck Sodré fazia um relato otimista da situação militar, sendo aplaudido pela plateia ansiosa.

A questão central era: o que fará o general Amaury Kruel, comandante do Segundo Exército? O mesmo Kruel que eu havia chamado de golpista no comício da Cinelândia e que Jango nomeara, no mês seguinte, para comandar o Exército em São Paulo. Disso dependia a sorte do golpe. Trairia Jango? Não, achava Sodré. Sim, achava eu. Mas, ao falar, disfarcei meu ceticismo a respeito da posição de Kruel, transmitindo, no entanto, uma parcela de minha apreensão com o andar das coisas. E voltei para as rádios. Como se soube depois, já naquela noite Kruel propusera a Jango fechar o CGT e a UNE, mudar ministros e reprimir a esquerda, ouvindo a recusa como resposta.

Já de madrugada, fui com o deputado Max da Costa Santos para a casa de amigos dele, no Jardim Botânico, onde passaríamos o resto da noite. Era impensável dormir na UNE, diante do risco de atentados e prisão, ou mesmo no hotel Novo Mundo, onde vez por outra pernoitava. Por volta das cinco, Max me acordou com a notícia da adesão de Kruel ao golpe. Fomos aos Correios a fim de encontrar dirigentes da FMP e obter informações sobre o quadro militar em todo o país. O prédio estava protegido por tanques. Juntei-me com Marcelo Cerqueira, com quem dividiria todos os passos nas semanas seguintes.

Bunker

O ambiente, naquela espécie de bunker da FMP, era de debandada. Toda vez que, nas décadas seguintes, participei de alguma derrota política, sempre me veio à cabeça, como mecanismo de consolo, aquele ambiente da sede dos Correios. Em matéria de derrocada e dispersão, nada foi nem viria a ser pior do que aquilo.

No fim, achamos que os tanques que protegiam o prédio começavam a virar seus canhões para ele. E viravam! Por isso, saímos, Marcelo e eu, por uma porta lateral, e fomos a pé até a base aérea do Santos Dumont à procura de seu comandante, o brigadeiro Francisco Teixeira, legalista e boa figura:

– Brigadeiro, por que o senhor não manda seus aviões atacarem, espantarem esse pessoal que vem de Minas?

– Olhe, bastaria um só avião para dar conta disso. Eles vêm com soldadinhos, uma tropa muito fraca. Mas a ordem do presidente foi que mantivesse os aviões no chão.

– É possível que um avião nos leve a Porto Alegre?

– Não. Sem ordem superior, não posso autorizar.

Ficamos desencorajados pela impossibilidade de ir ao Rio Grande do Sul a fim de resistir, pois lá estava Brizola, e o comandante do Terceiro Exército, recém-nomeado, assegurava que defenderia a legalidade num esquema que, com muito otimismo, talvez pudesse replicar o de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros e do veto dos ministros militares à posse de Jango, então vice-presidente.

Fomos em seguida para o Ministério da Marinha e chegamos até o ministro, o almirante Paulo Mário, sem que ninguém, ninguém mesmo, perguntasse nossos nomes ou o que fazíamos ali. Isso da portaria até a sala do almirante, que pareceu estar ainda mais por fora e desarmado do que nós.

Afinal, onde estava o dispositivo militar de Jango? Dispositivo não é feito para ser acionado? Apagara-se sem ruído, como uma bolha de sabão.

Kombi

Não sei exatamente como, tomamos uma Kombi e rumamos para a Baixada Fluminense para encontrar dirigentes do CGT e trocar ideias sobre o que fazer. Onde? Na casa do deputado Tenório Cavalcanti, em Caxias, que, por motivos alheios à política, era uma verdadeira fortaleza, com grandes portões de aço à prova de balas.

Tenório era o detentor da popular Lurdinha, uma metralhadora leve portátil, e tinha nas costas cicatrizes de tiros recebidos em emboscadas não políticas, digamos assim. Dono do jornal “A Luta Democrática”, o terceiro do Rio em número de exemplares, era muito bom de voto e se candidatara a governador da Guanabara, dividindo o eleitorado mais popular com o deputado Sérgio Magalhães, o que facilitaria a eleição de Lacerda. Na época, não havia segundo turno.

Sentados em torno de uma pequena mesa, na sala pouco iluminada, trocamos figurinhas pessimistas sobre a situação, todos duvidando da possibilidade de, aliado a Leonel Brizola, João Goulart resistir no Rio Grande do Sul, para onde iria, ou já tinha ido, ao deixar Brasília. O Batistinha, dirigente do CGT e membro do PCB, avaliava: “Existe a possibilidade de o golpe se ‘pessedizar’. Juscelino aderiu nos últimos dias, os caciques do PSD participaram. A moeda de troca será a garantia das eleições presidenciais no ano que vem, e o processo pode acabar virando briga de branco, UDN contra PSD, Lacerda contra Juscelino. A gente precisa permanecer agrupado, se proteger, não fazer loucuras e acumular forças enquanto isso acontece.”

Não achava que seria assim, mas era mais confortável acreditar, torcer para que viesse a ser assim. Um pouco mais tarde, na cama improvisada num sofá da mesma sala, ouvi um discurso ao vivo de Brizola, no Rio Grande do Sul. Não me sai da cabeça até hoje uma conclamação para a luta que ele fazia aos “sargentos de Bagé”.

Incêndio

Foi ali, pelo rádio, que soube, mortificado, da invasão e do incêndio da sede da UNE pelos grupos paramilitares lacerdistas. Entrevia as chamas bem vermelhas que apareciam na janela da minha sala. Lá tinham permanecido assessores meus, que eu levara de São Paulo, ao lado de algumas dezenas de outros estudantes, membros do CPC, como Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e Carlos Vereza. Apesar de desarmados, ficaram até o fim e escaparam pelo pátio de trás.

Já estávamos sendo procurados pela ágil repressão lacerdista. E se fôssemos presos naquela casa? Para onde ir, o que fazer? Que confusão ia dar no Brasil? Tínhamos contribuído para isso? Quanto? Seria possível viver clandestino, reagrupar forças? E se não fosse, fazer o quê? Não poderia terminar a faculdade? E meus pais? Bem que eu poderia não ser filho único.

Para mim, ainda é doloroso lembrar aqueles momentos e falar sobre o golpe, sobre o que veio logo antes e depois. Até hoje, tenho um mal-entendido com esse pedaço de minha vida e da nossa história.

Ao acordar, imaginei por instantes ter sonhado, que não estava onde estava e que o 1º de abril fora apenas um pesadelo. Depois, compreendi melhor por que essa dúvida é uma quase trivialidade na literatura. Não é por falta de imaginação dos escritores. É porque ela acontece mesmo diante de cada tragédia. E eu estava vivendo a minha primeira, aos 22 anos recém-completados.

De manhã, disse a Marcelo, ou ele a mim: “Vamos embora logo. Olha, não quero ser injusto, mas receio que alguém possa nos entregar. E, se é para sermos presos, que seja noutro lugar”.

A entrada na cidade do Rio, numa Kombi cinza velha, foi o grande pesadelo diurno, infelizmente inesquecível. Olhos ardendo pela falta de sono, sol, calor, ruas barulhentas, gente comemorando o golpe com buzinaços, multidões caminhando para celebrar, naquela que teria sido a réplica carioca da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, marcada para o dia 2 de abril, e que se transformou na festa da derrubada de Jango. Mais tarde, pela televisão, assistimos à comemoração, animada por locutores especialmente eufóricos e cretinos, com discursos de gente que eu não conhecia, e vimos o povo festejando o golpe “democrático”.

Fomos para um apartamento vazio do pai de uma amiga, na Barata Ribeiro, onde eu às vezes ficava. Na porta, aguardava-me Marcílio Krieger, catarinense que trabalhava comigo: “Vi gente rondando aqui. Acho perigoso vocês ficarem”.

Ir para São Paulo? Além do risco da viagem, havia o fato de que o general Kruel, comandante do Segundo Exército, tinha motivos pessoais para guardar rancor.

Separei-me do Marcelo, aguardando, não sei onde, que ele viesse com algum esquema de hospedagem segura. Veio então com Vianinha e Jacob Kligerman, aplicado estudante de medicina, “Partidão” até a alma e polinamorador nas horas vagas. Com esse objetivo, mantinha uma “garçonnière” na Lapa, perto da sede carioca do Departamento de Ordem Política e Social. Paciência! Ficamos lá por alguns dias. Em conversas animadoras, Marcelo falou do Cecil Borer, chefe do Dops no Rio –até aquele momento, eu não sabia de quem se tratava. Aprendi que Borer era um paladino da repressão e da tortura desde a década de 30. Soube também o que era pau de arara, aparelho de tortura de que nunca ouvira falar. “Zé, se formos presos, o Borer nos põe lá.”

Eu vestia uma feia camisa amarelada, colarinho engomado, que Max da Costa Santos me emprestara na manhã do dia 1º. Além de já estar encardida, me caía desajeitada. Troquei-a por outra pior ainda, de um amigo a cuja casa fomos e que era uns 20 centímetros mais baixo do que eu. Finalmente, tive a pequena satisfação, no meio daquela rota de fuga, de ganhar duas camisas de Jacob, que era mais alto e encorpado. Uma coisa tornou-se perceptível em nossa peregrinação, embora nada comentássemos, nem entre nós: não obstante a gentileza, o desconforto dos familiares dos diferentes amigos que procurávamos.

Retrato

Grandes jornais do Rio publicaram fotos da UNE incendiada e de suas dependências. Não sei qual deles dava destaque para um retrato de Josef Stálin, afirmando que adornava a parede de minha sala. Ficava me perguntando se os historiadores do futuro iriam acreditar naquilo e em tantas outras estultices. O único refresco, na imprensa, foi um artigo de Carlos Heitor Cony, no “Correio da Manhã”, mostrando, do jeito e com o talento dele, a farsa do golpe democrático, a partir de cenas que observara no Posto 6.

Apesar de relativamente calmos, com autocontrole, estávamos totalmente desarticulados, sem informações, sendo perseguidos e sem lugar seguro para ficar. Por isso, alguém sugeriu que buscássemos proteção numa embaixada, o que me pareceu, num primeiro momento, inconcebível; num segundo, a opção possível.

Um deputado do PTB da Guanabara, Paulo Alberto Monteiro de Barros (mais conhecido depois por seu pseudônimo: Arthur da Távola), entrou em contato com Juscelino, que pediu ao embaixador da Bolívia que nos abrigasse. Paulo foi primeiro e mandou um amigo, Toninho Cavalo –sim, o futuro técnico do Botafogo e do Atlético Mineiro–, encontrar Marcelo e a mim num posto de gasolina.

Ao ver chegar um homem sem nenhum jeito de amigo do Paulo, nos afastamos rapidamente de carro e ele foi atrás, confirmando nossa impressão de que era da polícia. Não sei mais como chegamos a um entendimento, mas o fato é que acabamos entrando na embaixada. Mais à noite, Toninho, a secretária do Paulo Alberto e a sogra, Dona Emilinha, mulher do professor Anísio Teixeira, apareceram lá com camas de lona desmontáveis, lençóis limpos, comida e um aparelhinho de TV.

Lá fiquei perto de três meses. Os salvos-condutos iam saindo, o pessoal viajando, mas eu ia ficando. O ministro da Guerra, general Costa e Silva, disse expressamente ao embaixador boliviano, Álvaro Castillo, que se esforçava para resolver minha situação: “Salvo-conduto para esse rapaz, não, embaixador. Ele é perigoso”.

Carta

Há dois ou três anos, recebi a cópia de uma longa carta manuscrita que enviei, ainda na embaixada, relatando minha vida e minha situação ao advogado que então me assistia, Evaristo Morais Filho. Ela não mostra abatimento, mas surpresa e indignação pelo que acontecera. Recebi também a cópia de um filme mostrando minha participação no comício de 13 de março, feito por Leon Hirszman e por Eduardo Coutinho, que eram do CPC da UNE.

O texto, a caligrafia, o filme fizeram-me evocar com emoção um conto de Jorge Luis Borges: na maturidade, o escritor encontra, sentado num banco, às margens de um rio, um jovem que, para seu espanto, descobre ser ele mesmo. O jovem ignora quem é seu interlocutor, mas percebe o afeto daquele homem mais velho que, no fundo da alma, gostaria de contar-lhe tudo sobre a vida, para que a vivesse melhor. É o que senti ao rever a mim mesmo, no papel e na imagem, tanto tempo depois.

[Nota: Este texto é uma versão abreviada, para publicação na “Ilustríssima”, do primeiro capítulo de “Cinquenta Anos Esta Noite”, a ser lançado em junho.]

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José Serra, 71, é economista. Foi ministro do Planejamento e da Saúde, prefeito de São Paulo e governador do Estado de São Paulo