Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os arquivos ainda estão fechados

Não, eu não nasci durante a ditadura. Tudo o que sei sobre esse período (ou imagino que saiba) está guardado numa caixa de sapatos da Penalty – uma das tantas ironias do país do futebol. São fotos, bilhetes, cartas e recortes de jornal a me contarem sobre chegadas e partidas, alegrias e tristezas, (re)encontros e rupturas vividos por meu pai durante os anos do exílio. Em meio a tantas lembranças, a constatação de que fora, também, em condições tão incertas e vacilantes que ele se tornara pai pela primeira vez – da minha irmã mais velha. Histórias que, independentemente do desfecho, carregam as marcas desse tempo e as estendem até nós, os filhos de uma geração que acreditou em outra via possível para esse mundo – ainda tão desigual, pouco justo e, cada dia mais, individualista.

Em meio aos 90 e a um passo dos anos 2000, vivíamos um segundo exílio – como meu pai costuma descrever a sua ruptura com a militância e o processo de redefinição de identidade impulsionado por esta decisão, que nos levou do ABC ao interior de São Paulo. Ainda que pertencente à geração da redemocratização, passei boa parte da adolescência sendo cautelosa com aquilo que iria contar aos outros sobre a minha família. Afinal, a orientação recebida era a de não falar. Era sempre um labirinto complicado tentar explicar a existência da minha irmã, a maneira como meus pais se conheceram ou os motivos da nossa mudança para o interior. Até mesmo perguntas banais, como o porquê do nome do meu irmão, que carrega uma homenagem ao Tulio Quintiliano, assassinado pela ditadura chilena, me deixavam um pouco tensa.

Muitas vezes, as perguntas ficaram sem respostas e as explicações incompletas ou alteradas. Mas, em todos os casos, houve (e ainda há) uma necessidade: a de construir, mesmo em silêncio, uma narrativa coerente para mim sobre esse passado.

Para alguns, as cicatrizes desse tempo são como tatuagem; para outros, tornam-se nítidas no silêncio ou, ainda, na tentativa de seguir em frente. A maneira como cada um sofreu e reagiu ao impacto da ditadura em suas vidas varia. Não se trata de medir a intensidade dos medos, das dores e das perdas. A matemática de nada nos serve no plano dos sentimentos. Talvez, por isso, seja tão difícil resumir o que foi a ditadura civil-militar brasileira.

Porrada nas ruas

Uma linha do tempo, como nos fazem decorar na escola, basta para entender esse período da nossa história? Apontar Médici como o mais cruel dos generais presidenciáveis é suficiente para compreender por que se torturava e se assassinava no país? O que dizer, então, sobre a frase-síntese “ameaça comunista” – ela consegue explicar o que, de fato, é ser comunista ou por que eles são tão perigosos? O saldo dos nossos mortos e desaparecidos, ainda que necessário, dá conta de nos dizer um algo mais sobre essas vidas interrompidas tão precocemente? E os tentáculos invisíveis do regime, a privilegiar determinadas empresas e pessoas, quando serão conhecidos por todos os brasileiros?

Cinquenta anos após o golpe, continuo a viver em um país que (convenientemente) sabe pouco ou quase nada sobre este capítulo da nossa história – e, por isso, não é incomum ouvirmos palavras saudosistas desse tempo.

“Eu estudei em escola pública e era uma beleza”, defendem alguns, esquecendo-se de que o desmonte do ensino público foi iniciado, justamente, na era dos “grandes” generais (um google no acordo MEC-USAID traz informações reveladoras sobre o delírio desse argumento). “Não havia corrupção”, sustentam outros, tapando os olhos para as recentes descobertas de que a alta cúpula do Exército recebeu um polpudo suborno às vésperas do golpe para aderir à marcha contra a suposta ameaça comunista.

São muitos os nós a serem desatados para entendermos com clareza o que representou e ainda representa o regime militar em nossas vidas. Enquanto não abrirmos os arquivos secretos da época para passar a limpo essa história, continuaremos a fingir que tudo caminha bem e que nada disso nos diz respeito. Mesmo com a população levando porrada nas ruas ao decidir se manifestar ou com a omissão dos corpos dos nossos tantos Amarildos. Práticas de outrora ainda tão enraizadas nos dias de hoje.

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Xenya Bucchioni é jornalista