Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

50 anos dormem sobre aquela noite

Uma festa. Na segunda-feira, dia 31/3, formamos uma fila extensa na Livraria Cultura do Conjunto Nacional [em São Paulo]. Havia políticos, intelectuais, leitores, admiradores aos montes. Um jovem, de uns 20 anos, me perguntou: “Esse senhor que está autografando é artista, é o quê? Tanta gente”. O artista se chamava Almino Affonso. Expliquei quem era e o comentário dele me surpreendeu: “Interessante! Você é amigo dele, conheceu? Vocês viveram a história? Esta fila é de gente que viveu essa história?”. Ele não foi embora, eu o vi, rondou a fila, aproximou-se da mesa, olhou longamente para Almino, que, aos 85 anos, sorridente e disposto encarava abraços e assinaturas.

Este homem, Almino, não só viveu como fez também a história do Brasil dos últimos 50 anos. Muitos daqueles que ali estavam, ao ler este seu livro 1964, vão se lembrar dos fatos, eles aconteceram neste meio século, enquanto tentávamos trabalhar, amar, ter filhos, sepultar parentes e amigos, dar um significado às nossas vidas e os acontecimentos caíam sobre nossas cabeças.

1964 é muito mais que as memórias de Almino, é a restauração de um trecho da história do Brasil, é um tijolo na restauração desse homem chamado Jango Goulart, sobre o qual caiu o peso, a culpa pelo golpe dos militares em 1964. “Era o mais sábio de todos nós, ao perceber a disparidade de forças e ao recomendar o reformismo cauteloso”, define Almino, que foi ministro do Trabalho de Goulart, deputado pelo PTB, vice-governador de São Paulo, foi exilado por longo período.

Na fila – eis uma vantagem dela, às vezes –, folheando o grosso livro (679 páginas, mas poderia ter chegado a mil, tanto o material e fotos que Almino tinha/tem em mãos, disse Carlos Haddad, da Imprensa Oficial, que o editou), corri ao momento final, o crepúsculo de um regime e uma vida. Aquele dos debates no Congresso, a evolução dos fatos de março, o general Mourão indo de Juiz de Fora para o Rio, a tensão com a adesão ou não do general Amaury Kruel, do 2º Exército, Jango indo para o Rio Grande do Sul e Auro Moura Andrade, presidente da Câmara, vociferante, declarando vaga a Presidência da República. Muitos afirmam que Auro, sim, confirmou o golpe.

Vida normal

Aqui está também a reação de alguns parlamentares, como Rogê Ferreira que, ao se encontrar com Moura Andrade num corredor, lhe deu uma cusparada no rosto, conhecida como “cusparada cívica”. Os políticos parecem não saber (ou se importar) que ficam marcados pela história, para o bem e para o mal. O Almino romancista surge límpido no momento em que Jango, consumado o golpe, embarca rumo ao Rio Grande do Sul. Apenas três de seus ministros foram com ele no avião, numa viagem imponderável. No saguão do aeroporto estavam três deputados corajosos, Almino, Tancredo Neves e Bocayuva Cunha. Melancolia. Naquele momento, escreve Almino, “aprendi que como as folhas secas, os símbolos do poder rolam cedo pelo chão”. Bocayuva Cunha era um dos donos da Última Hora, portanto meu patrão.

A fila de autógrafos avançava, via velhos jornalistas, leitores, admiradores, observava políticos conhecidos que não entravam na fila, não tinham o livro nas mãos, se cumprimentavam, abraçavam, posavam para fotógrafos, davam entrevistas. Foram fazer visita social e midiática, seguidos por puxa-sacos e pelos penetras habituais, que dão colorido à cena. Súbito a jornalista Eleonora Paschoal, da Bandeirantes, surgiu, microfone em punho: “E onde você estava na noite de 31 de março?” Só então me dei conta de que era 31 de março. Claro, o lançamento foi bem armado, é simbólico. Cinquenta anos dormem sobre aquela noite. A frase não é minha, é de Cyro dos Anjos no romance Montanha. Cinquenta anos atrás, onde eu estava? Nas últimas semanas ouvi esta pergunta várias vezes, revistas e jornais pediram depoimentos, dei dois, um à revista Cult, mantida bravamente pela Daisy Bregantini, e outro a Caros Amigos.

Na fila, lembrei-me da tarde de 31 de março na redação de Última Hora, o jornal que foi contra o golpe, defendia Jango e o PTB, os trabalhadores e os estudantes. Um jornal muito lido, muito moderno como design. Esperávamos (ninguém arredou pé) que o general Kruel não aderisse ao golpe, afinal ele tinha sido ministro de Jango. Ficamos ali até cinco da manhã, quando Kruel aderiu. No dia 1.º de abril, o CCC, Comando de Caça aos Comunistas, saiu fortemente armado do Mackenzie, rumo à Última Hora para nos empastelar (De onde vem este termo? Reduzir a pastel?) o jornal. Desviou-se, foi para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

No final da tarde, uma tropa de choque da Força Pública, hoje PM, ocupou a redação, quebrou máquinas de escrever e teletipos (jovens nem têm ideia do que seja), pôs fogo em laudas que estavam sendo escritas, prendeu algumas pessoas, mandou o resto embora. Refugiei-me na casa do Fernando de Barros (ele tinha telefone, possuir telefone era privilégio), cineasta e amigo. Dali fui para o restaurante Gigetto, perplexo porque a vida estava normal, tudo igual aos outros dias, o cotidiano era o mesmo, as pessoas indo aos cinemas, aos teatros, aos bares, ônibus lotados, como se nada tivesse acontecido. E, no dia seguinte, continuou igual. Ninguém tinha ideia de que o Brasil tinha mudado?

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Ignácio de Loyola Brandão é colunista do Estado de S.Paulo