Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Boicote e censura à imprensa

Alguns órgãos de imprensa começaram há pouco tempo a admitir que erraram ao apoiar o Golpe de 1964 e colaborar com a Ditadura Civil-Militar no Brasil.

Por conta desse passado, porta-vozes de uma corrente de opinião crítica à atuação presente dos principais órgãos de imprensa do país passaram a reiterar a proposta de “boicote” a diversos veículos.

A tímida autocrítica feita pela Folha de S. Paulo em seu editorial do dia 30 de março suscitou, por exemplo, o seguinte comentário no Facebook: “Acho que deveríamos começar uma campanha nacional de boicote à Folha e a todos os órgãos da grande imprensa (Zero Hora/RBS, Globo, Editora Abril/Veja) que participaram do golpe e/ou que o apoiaram depois e que ainda hoje têm o descaramento de justificá-lo, ainda que com ressalvas”.

Os veículos citados estão entre os que hoje publicam notícias sobre corrupção nos governos e estatais e sobre deficiências nos serviços públicos, má gestão da economia, entre outros temas que expõem erros dos que estão no poder.

Esses veículos são líderes em seus mercados e são criticados não é de hoje por concentrar poder demais através do controle de diferentes plataformas de mídia. Há também acusações de oligopólio e excessiva influência política. Como no Governo Lula, também no de FHC ocorreram discussões sobre o tema e foram redigidos projetos de regulação da mídia. Um complicador nesse processo é a influência efetiva que a própria mídia exerce na discussão.

Outro complicador é a atuação dos inconformados com o noticiário presente. Esses não estão nem aí para as distorções da propriedade cruzada de mídias eletrônicas, nem para o vicioso sistema de concessões de radiodifusão e muito menos para os abusos da TV paga, quando se trata de proprietários de órgãos de imprensa que apoiam o governo pelo Brasil afora. E ainda muito menos estão preocupados com os abusos da propaganda pública e sua interferência nas eleições.

Esse é o pessoal que propõe o “boicote” e atua na web e na mídia chapa-branca, xingando os profissionais de imprensa de “vendidos à burguesia” e os veículos críticos aos governos de “golpistas” e “fascistas”.

A proposta de “boicote” é recorrente nos últimos anos e merece reflexão. Está em linha com a campanha que preconiza o “controle social” da mídia por delegados do poder e espalha na sociedade a suspeita, a antipatia e o ódio ao trabalho dos jornalistas em geral e aos que não são chapa-branca em particular.

Conta a acertar

É bom para a sociedade e o país que pessoas e instituições reconheçam o protagonismo, a cumplicidade e a omissão na Ditadura. Esse é um processo que por diversas razões vem ocorrendo tardiamente e a conta-gotas no Brasil.

Agora, 50 anos depois do Golpe, as Forças Armadas anunciaram que vão investigar torturas e mortes em algumas unidades militares. Estive preso no quartel da Polícia do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio, e em dois outros da Vila Militar, entre 1970 e 1971. Sei o que aconteceu.

O reconhecimento, mesmo tardio, de que a tortura e o assassinato de opositores foi uma política de estado praticada nos quartéis é uma dívida das Forças Armadas para com os que sofreram na carne, para com os que morreram e suas famílias e para com a sociedade. Somente depois disso estará aberto o caminho para o restabelecimento pleno do respeito e admiração dos brasileiros às instituições militares.

Todas as pessoas e instituições que apoiaram a Ditadura têm essa conta a acertar com a sociedade. Algumas têm a cara de pau de se apresentar como combatentes da resistência democrática. Políticos que estão hoje no poder e empresários que não deixaram de se beneficiar dos sucessivos governos foram protagonistas e cúmplices da Ditadura.

A rigor, a sociedade brasileira tem contas a acertar consigo mesma. O fato é que grande parte apoiou o Golpe e depois se acomodou e aplaudiu a Ditadura mesmo nos momentos de maior truculência. Hoje é muito barato falar em resistência democrática. Recomendo ler as pesquisas e reflexões do historiador Daniel Aarão Reis sobre o tema. Um bom começo é o livro ‘Ditadura e Democracia no Brasil’, que acaba de ser lançado.

Muita água ainda tem de rolar nessa cachoeira. Serão necessárias muitas “comissões da verdade” para passar essa história toda a limpo. Não foi somente nas Forças Armadas, na polícia e na imprensa que houve participação, adesão e omissão na Ditadura. É preciso investigar mais a fundo o que ocorreu na administração pública, nos partidos, no Legislativo, no Judiciário, no mundo empresarial, nas instituições de ensino, nas entidades de classe e por aí vai. São muitos muros de silêncio a serem derrubados.

Imprensa submissa

O que ocorreu na imprensa brasileira durante a Ditadura?

Praticamente toda a imprensa apoiou o Golpe Civil-Militar de 64. As exceções foram os jornais da esquerda, que deixaram de circular no dia seguinte. Dos grandes jornais, a Última Hora apoiou Jango, mas foi empastelada, incendiada e foi sendo calada. O Correio da Manhã apoiou o Golpe, mas fez oposição à Ditadura desde a primeira hora. Foi pressionado, ameaçado e submetido à asfixia comercial e financeira até fechar. Os órgãos públicos deixaram de anunciar. As empresas que insistiam em anunciar eram forçadas a parar por pressão do governo, inclusive com ameaça de corte de crédito nos bancos públicos.

Depois, todos os grandes veículos de comunicação sofreram censura e apoiaram a Ditadura mais ou menos descaradamente, por mais ou menos tempo, alguns mais por convicção outros mais por interesse ou por medo. Fui testemunha como cidadão, como leitor, como ouvinte e telespectador. E também como jornalista. Trabalhei no Jornal do Brasil entre 1971 e 1976. Lá presenciei inúmeras situações vergonhosas de submissão à Ditadura, algumas constrangidas, outras não. Foi a chamada “imprensa alternativa” que cumpriu o valente papel de resistência sob censura e toda sorte de violência.

Hoje, como as Forças Armadas e outras instituições, a imprensa paga o preço da adesão à Ditadura e tem de aprofundar a autocrítica não somente com admissão de culpa e desculpas, mas principalmente com o comprometimento efetivo com a democracia e a liberdade. Isso passa, inclusive, por aceitar o debate em torno da mudança nas regras do setor para desmontar a concentração do controle das diferentes plataformas, um sistema de concessões republicano e uma regulação democrática, o que não tem nada a ver com o projeto de “controle social” por delegados do partido no poder.

Censura sem cerimônia

Mas o que significa hoje “boicote” a um veículo de comunicação?

Imagino que o ideólogo e o promotor do “boicote” não pretendem convencer quem deseja se informar de deixar de ver, ouvir e ler o veículo que bem entende, o jornalista de sua preferência, a matéria ou artigo do seu interesse. Fora isso, o que seria o “boicote”? Seria, talvez, impedir um jornal ou uma revista de circular, tirar uma emissora, um portal ou um blog do ar? Ou, quem sabe?, vetar um ou outro jornalista ou blogueiro? Ou prendê-lo? Seria cortar anúncios do governo? Perseguir os outros anunciantes? Ou queimar o que acham que não deve ser lido, como fizeram os animados manifestantes no dia 25 de fevereiro passado na Cinelândia, na tradição de nazistas e inquisidores.

“Boicote” aqui é mais uma daquelas palavrinhas usadas sem cerimônia para esconder propostas inaceitáveis. Em bom português, é pura e simplesmente uma forma covarde de propor a censura.

Querem erguer novos muros de silêncio no Brasil antes mesmo de demolir os que a Ditadura impôs e estão de pé até hoje.

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Altamir Tojal é jornalista