Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A dor de não saber

Quinta-feira, 23 de outubro de 1975. A Congregação, órgão máximo do Instituto de Química da USP, está reunida para uma decisão importante: o que fazer a respeito da professora Ana Rosa Kucinski, desaparecida havia 19 meses.

Em 22 de abril de 1974, Ana Rosa, de 32 anos, disse aos colegas que iria ao centro da cidade almoçar com o marido, o físico Wilson da Silva. No trabalho, Wilson contou algo semelhante: almoçaria com a mulher e depois voltaria ao escritório.

Nunca mais foram vistos. Ambos militavam no que restava da Ação Libertadora Nacional, organização armada de esquerda. Os poucos integrantes ainda vivos eram perseguidos com especial brutalidade pelo regime militar.

Confirmado o desaparecimento, a família da Ana Rosa iniciou uma cruzada. Recorreu à Organização dos Estados Americanos, ao Departamento de Estado dos EUA, levou o caso ao general Golbery, chefe da Casa Civil do governo Geisel, com intermediação do então arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns.

Pressionado, o ministro da Justiça, Armando Falcão, disse em nota oficial que Ana Rosa não estava presa. Era uma “terrorista foragida”. Apesar das mentiras de Falcão, as evidências eram fortes: Ana Rosa havia sido levada pela repressão.

O reitor da USP, Orlando Marques de Paiva, monta um grupo para analisar o caso. No burocratês uspiano, uma “comissão processante”, formada por um representante da consultoria jurídica da universidade, Cassio Raposo do Amaral, mais dois professores: um da própria Química, Geraldo Vicentini, e outro da Odontologia, Henrique Tastaldi, que estava se aposentando para depois ser recontratado pelo IQ.

Apesar das evidências fornecidas pela família, que apontavam para uma captura pelo aparato repressor, a comissão faz um relato frio. Prende-se às faltas de Ana Rosa, e às consequências trabalhistas. Recomenda dispensar a professora.

O parecer é encaminhado à Congregação. Quinze professores do Instituto de Química estão reunidos. Por razões até hoje desconhecidas, o assíduo presidente do colegiado, Paschoal Senise, não comparece. Walter Colli, da bioquímica, também não está.

Em votação secreta, por 13 votos a favor e dois em branco, a instância máxima do Instituto de Química da USP demite Ana Rosa Kucinski por “abandono de função”.

Flor metálica

No livro semificcional “K”, o jornalista Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, especula como teria sido esse encontro. Com base na ata da reunião, e imaginando o que pensavam os envolvidos, Kucinski constrói um quadro em que, por razões diversas –convicções reacionárias, estratégia, omissão, covardia–, os votantes permitem que uma injustiça aconteça.

Mas outros pesquisadores, que analisaram recentemente o processo, têm uma visão mais nuançada. Tiram o foco da Congregação e destacam a etapa anterior, a do duro relatório da comissão processante, que teria selado o desfecho do caso.

Independente do ponto de vista, muitas perguntas sobre a Congregação jamais terão resposta.

De quem foram os dois votos em branco? E foram de protesto, ou saíram em branco por uma trivialidade qualquer? Por que o professor Senise, que nunca faltava, se ausentou?

E mais: por que o grupo, que incluía gente de esquerda, votou maciçamente para demitir uma professora que eles sabiam ter sido levada pela repressão? Foram forçados, ou votaram com a consciência? Por que não optaram por algo mais brando, como uma suspensão?

A historiadora Janice Theodoro da Silva, presidente em exercício da Comissão da Verdade da USP, esquadrinhou a papelada. E prefere não especular sobre as motivações da Congregação.

“Como a gente não sabe, eu não julgo”, ela diz. “Temos de conviver com a dor de não saber.”

Uma dor que os colegas de Ana Rosa na USP conhecem bem.

Em depoimento emocionado (youtu.be/VcrR1JbfH9w), a hoje professora aposentada Shirley Schreier descreve a última vez em que viu Ana Rosa. Na juventude, foram muito próximas. Depois Shirley mergulhou no trabalho e ficou sem tempo para a amiga.

Pouco antes de desaparecer, Ana foi à sala de Shirley conversar. Percebeu que ela estava ocupada, disse que viria outro dia. Jamais voltaram a se ver.

Terça-feira passada houve uma cerimônia no IQ. Na data exata dos 40 anos do desaparecimento, finalmente o instituto pediu desculpas à família de Ana Rosa Kucinski. A demissão foi revogada.

Nos jardins da instituição, uma escultura da artista Kimi Nii –uma flor metálica– agora homenageia a cientista que a ditadura assassinou.

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Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo