Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

De Trumbo a Trump — lista negra ao vivo e em cores

Não é apenas a cinebiografia de um dos maiores roteiristas de Hollywood, Dalton Trumbo (1905-1976). É o retorno a um dos períodos mais sórdidos e perversos da política dos EUA, penosamente contemporâneo, contraditório, recheado de premonições.

Ficha de Donald Trumbo no FBI / Foto Wikimedia / CC

Ficha de Donald Trumbo no sistema penitenciário dos EUA / Foto Wikimedia / CC

Tinsel town, cidade das lantejoulas, é uma das alcunhas de Hollywood e um de seus melhores disfarces: a fábrica de sonhos na qual se fabricou o século americano, pode ser rapidamente convertida em severo tribunal em cujos bancos são obrigados a sentar-se poderosos réus – o racismo, a corrupção, o crime organizado, o mercado financeiro, a imprensa e até a própria Sétima Arte.

Este observador assistiu “Trumbo,……….” num confortável cinema do Leblon — considerado o nicho do reacionarismo carioca — e se surpreendeu com os aplausos enquanto rodavam os letreiros com os créditos e as informações sobre o epílogo da história. Até aquele momento, o único jornal da cidade – o “Globo” – ainda não publicara uma resenha do filme recém-estreado.

Legítimo supor que o espectador médio ainda não tivera acesso às referências para compor o contexto histórico e político onde se desenvolve o enredo. Não obstante, percebeu a gênese daquele surto fascista (mais tarde batizado como macarthismo e hoje prestes a chamar-se Trumpismo). Sobretudo foi tocado pela mensagem libertária de resistência ao boicote de ideias.

Os dez de Hollywood

E, no entanto, “Trumbo” não é uma obra-prima, é apenas um filme excelente — correto, decente, bem narrado, bem interpretado, comprometido com o resgate da história mesmo que a saga dos Dez de Hollywood, Hollywood’s Ten (como o episódio ficou conhecido), tenha sido reduzida para alguns pares. O próprio Trumbo e seus contemporâneos não o fariam melhor presos às naturais limitações e convenções da dramaturgia. E o efeito seria de igual intensidade — o público distanciado no tempo e no espaço perceberia a mensagem libertária, tolerante e, sobretudo, democrática.

É de mensagens que trata “Trumbo” e o espírito daquele tempo — Zeitgeist — é fruto da derrocada do nazifascismo e da vitória da democracia na 2ª Guerra Mundial. Aquela safra de filmes (a maioria deles, produções baratas, tipo B) que assustou a extrema-direita americana e levou-a pressionar os estúdios contra a infiltração subversiva, nada tinha de comunista. Era parte de um gênero mais tarde conhecido como cinéma noir, realismo puro e simples que Hollywood, com raríssimas exceções, até então desprezara.

A extrema-direita americana sempre detestou o New Deal, o Novo Contrato proposto pelo democrata Franklin Delano Roosevelt, claramente progressista. E quando os EUA declararam guerra ao Japão em resposta à agressão em Pearl Harbor (1941), foi Hitler quem tomou a iniciativa de declarar guerra aos EUA. Imaginava que os EUA jamais se aproximariam da URSS. Um de seus erros capitais.

Os reacionários fizeram o impossível para que a União Soviética ficasse fora da entente dos Aliados. É conhecido o apelo direto da Casa Branca aos magnatas de Hollywood – em sua maioria judeus oriundos do Leste Europeu – para que produzissem filmes pró-Rússia (caso da “Canção da Rússia” com Robert Taylor, 1944, que popularizou o concerto Nº1 para Piano de Piotr Tchaicovsky). A direita perdeu mais esta batalha.

Não por casualidade, logo após o fim das hostilidades na Europa surgiu nos EUA o neofascista, America First Party, cujo fundador (Gerald L.K. Smith) com o patrocínio de Walt Disney passou a denunciar a “mentalidade estrangeira dos judeus russos em Hollywood”.

Dois anos depois (25/11/1947) estava montado o circo de horrores na Comissão de Atividades Anti-Americanas do Senado com o indiciamento de 10 profissionais dos estúdios, principalmente roteiristas, atores e diretores. O famigerado Joseph, Joe, McCarthy, já era senador republicano por Wisconsin mas só começou a chamar a atenção em 1950 depois de um inflamado discurso contra a infiltração comunista e o homossexualismo no cinema, na “Voz da América” e no Departamento de Estado.

McCarthy e o macarthismo não aparecem em “Trumbo” porque ainda não haviam se convertido nas estrelas daquele surto de histeria que, infelizmente, não foi o último vexame da democracia americana. O Tea Party é o mais recente porém não o derradeiro. O país que venceu o fascismo parece intoxicado por ele. Ou são as elites que cansaram da democracia?

A enfezada descompostura da colunista Hedda Hopper (Helen Mirren) no atônito Louis B. Mayer quando distrata todos os chefes dos estúdios designando-se pelos nomes judaicos originais, ainda que ficcional resume o ressentimento antissemita da ultradireita de Hollywood. Não por acaso logo em seguida, os estúdios capitularam diante da pressão do Senado.

Não por acaso também os filmes que tiraram Trumbo do ostracismo e desmoralizaram a lista negra foram iniciativas de judeus (não necessariamente iniciativas judaicas). No primeiro, “Spartacus”, o autor da história original, Howard Fast; o protoganista e produtor, Kirk Douglas, e o diretor Stanley Kubrick. Em “Exodus”, o autor do livro, Leon Uris e o diretor Otto Preminger.

O ABC das listas negras, ou embargos, ou boicotes

A lista negra é irmã da censura: esta coíbe obras, ideias, aquela escraviza autores. A expressão poderia ser substituída por embargo ou boicote. O substantivo blacklist e sua variação verbal, impuseram-se.

Em regimes totalitários, a lista negra, é rigorosamente desnecessária, o sistema encarrega-se de identificar, embargar e suprimir, o quê ou quem deve ser embargado ou impedido.

A lista negra não é produzida pelo Estado, a não ser quando o Estado dos Direitos está aniquilado. A lista negra é um ardil para sabotar as liberdades vigentes. É um recurso corporativo que vige nos desvãos da democracia, à sombra de poderes espúrios – religiosos, econômicos ou políticos.

A lista negra de Hollywood não foi imposta pelo Legislativo americano, este limitou-se a castigar os insubmissos que recusavam colaborar, designando-os como comunistas. Sua alma é gerenciada pela Motion Picture Association, uma guilda formada pelos estúdios, distribuidoras, cadeias de cinemas e, sobretudo pelos bancos que financiam a indústria e o comercio de filmes.

Este sistema de filtragem totalitária funciona principalmente na indústria cultural: em pleno regime republicano um dos primeiros livros de [Afonso Henriques de] Lima Barreto, (1881-1922), “ Recordações do escrivão Isaías Caminha” foi considerado como uma crítica ao jornal e jornalistas do “Correio da Manhã” (onde trabalhou). Depois disso e ao longo de mais de meio século, o nome do escritor rebelde e anarquista, jamais foi mencionado no “Correio”. Em solidariedade, os demais jornais da grande imprensa carioca aderiram à nascente lista negra corporativa. A vítima deste bullying cruel e insano. morreu louco.

Enquanto funcionou, o Santo Ofício da Inquisição (1536-1821) encarregou-se de produzir as listas negras, quem podia assinar seus livros ou era obrigado a manter-se no anonimato. Durante o Estado Novo (1937-1945) e a ditadura militar (1964-1985) as listas negras eram desnecessárias – o regime fazia o serviço integral.

Por ironia, a redemocratização trouxe para a indústria jornalística brasileira a oportunidade de criar uma corporação suficientemente forte, subterrânea, monolítica e disciplinada, capaz de listar os subversivos e zelar pela manutenção das penalidades: a Associação Nacional de Jornais, ANJ, devidamente assessorada pela competente prelazia da Opus Dei. As façanhas da dupla merecem um relato especial. Aguardem.

Veja o trailer do filme Trumbo

Veja também um documentário sobre os Dez de Hollywood

***

Alberto Dines é jornalista, escritor e co-fundador do Observatório da Imprensa