Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Intelectuais gaúchos saldam dívida histórica

Na terça-feira (15/11) termina a 51ª Feira do Livro de Porto Alegre. Evento esperado todos os anos pelos meios intelectuais e literários gaúchos e nacionais, é considerado a maior feira de livros ao ar livre da América Latina. Este ano a feira ocupou 20 mil metros quadrados, quase 8 mil metros quadrados são cobertos, divididos em três áreas: geral, internacional e infanto-juvenil. À parte a comercialização das obras, ocorreram variados simpósios, palestras, exibições de filmes e peças teatrais, e outras atividades espalhadas pelos diversos centros culturais do centro da capital gaúcha.

Na edição deste ano, os intelectuais ligados à Câmara Rio-Grandense do Livro, promotora do evento, decidiram resgatar uma dívida histórica de Porto Alegre para com um dos principais homenageados pela feira, em 2005. É ele o escritor, filósofo e jornalista Jean-Paul Sartre (1905-1980). Sartre abordou quase todas as áreas da escrita, do romance ao cinema, e das reportagens jornalísticas ao teatro.

Pois há 45 anos Sartre e sua companheira de toda a vida, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir, acompanharam o primeiro ano da então jovem e vitoriosa revolução cubana Intelectual militante, Sartre foi a Havana, em 1960, a serviço do jornal parisiense France Soir, para escrever uma série de 15 reportagens, de imediata repercussão mundial.

Essas reportagens sobre a Cuba revolucionária motivaram um grupo de intelectuais brasileiros a convidar Sartre e Simone. O casal, vindo de ilha, desembarcou em Recife em 12 de agosto de 1960. Foram embora em 21 de outubro, depois de visitar São Paulo, Rio de Janeiro, a Bahia, Minas Gerais, Fortaleza, uma Brasília recém-inaugurada e a Amazônia.

Por que Porto Alegre e o Rio Grande do Sul ficaram de fora desta incursão de Sartre ao Brasil? Esta é a questão até hoje não muito noticiada. Até apagada. Uma mancha histórica para a intelectualidade gaúcha, como veremos, mais adiante, em detalhes.

‘Juventude arrebatada’

O jornal O Estado de S.Paulo (19/6/ 2005) publicou matéria do jornalista Ubiratan Brasil sob o título ‘Casal visita favela carioca e encontra intelectuais’. Os meios jornalísticos e universitários nunca foram os mesmos após a passagem do casal francês. Nas palestras que fez por aqui, Sartre defendeu a revolução cubana e visitou uma favela carioca no momento em que Carolina de Jesus lançava seu livro Quarto de Despejo. Anos depois, Simone escreveria em seu diário: ‘O brasileiro não gosta de mostrar suas favelas’. Já Brasília, aonde foram a convite de Oscar Niemeyer, lhes pareceu ‘uma maquete em tamanho natural’.

Na matéria, Ubiratan Brasil lembra que Sartre e Simone visitaram uma fazenda no interior, ‘onde o escritor francês travou longas conversas com Júlio de Mesquita Filho, então diretor de O Estado de S.Paulo, o principal órgão veiculador de sua viagem ao Brasil’.

Fascinado pelo Brasil, Sartre prometeu voltar em 1962 ou 1963, para observar mais de perto a diversidade cultural que tanto admirou. Sua promessa não foi cumprida e esta foi sua única visita ao país.

Mas na revista mensal Les Temps Modernes, por ele fundada em 1945, em Paris, Sartre nunca esqueceu o Brasil. Folheando ao acaso a revista, nos anos de 1967 e 1968, vamos encontrar colaborações diversas de intelectuais brasileiros, algumas de personalidades até controvertidas, nos dias de hoje. Naquele anos escreveram para Temps Modernes intelectuais reconhecidos como Otto Maria Carpeaux sobre literatura brasileira; Jean-Claude Bernardet sobre o cinema novo; Antonio Callado sobre as Ligas Camponesas; Celso Furtado (‘Da oligarquia ao Estado militar’); Florestan Fernandes (‘Relações entre as raças’); Francisco Weffort sobre o populismo; J. Leite Lopes sobre ciência e sociedade; Hélio Jaguaribe, sobre estabilidade social e o colono-fascismo. E, por fim, aparece Fernando Henrique Cardoso (‘esqueçam o que escrevi…’), com um longo artigo sobre ‘Hegemonia burguesa e independência econômica’.

Em outubro de 1967, Sartre dedica um número especial de sua revista ao Brasil, relatando aquele período negro de nossa história, os fracassos e pequenas vitórias dos dissidentes do modelo implantado em 1964 pelos militares e seus aliados conservadores.

No Rio de Janeiro, entusiasmados com o casal francês e com Cuba, jornalistas e escritores lançaram, em livro, as reportagens de Sartre para o France Soir. O título ‘Furacão sobre Cuba’ é a primeira obra da Editora do Autor, e sai, em setembro de 1960, com sucesso de vendas.

Na apresentação do livro, os responsáveis pela Editora do Autor exaltam ‘a cultura de filósofo e a força de um escritor a serviço da liberdade dos povos e da dignidade humana’. Em apêndice, ‘Furacão sobre Cuba’ apresenta dois artigos. Um, de Fernando Sabino, fora publicado no Jornal do Brasil em março de 1960. O outro, de Rubem Braga, está na edição de junho daquele ano da revista Senhor. Sabino e Braga foram a Cuba, com outros jornalistas, e relatam suas impressões da Cuba revolucionária.

No prefácio à edição brasileira, Sartre recorda: ‘Em toda a parte, no Brasil, na Bahia, no Rio de Janeiro, em Araraquara (SP), encontrei uma juventude arrebatada. A primeira pergunta era sempre: ‘E Cuba?’ Acabei compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era falar deles próprios. (…) Um dia, apesar de todas as divergências e interesses, a América Latina se unirá na liberdade readquirida. Cuba sabe disso, os brasileiros sabem, todo o mundo sabe. Não basta, contudo, que todas estas coisas sejam sabidas. É necessário que sejam ditas’, conclui o prefácio de Sartre.

Ambiente medieval

Para os habitantes de uma Porto Alegre que já recebeu, entre outros, eventos internacionais do porte de um Fórum Social Mundial, é absolutamente inacreditável relembrar o clima de obscurantismo medieval vivido pela sociedade gaúcha nos anos 1950 e 60. Embora alguns mais céticos digam que a situação não tenha melhorado muito desde então, o fato é que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir foram vetados no Rio Grande do Sul, considerados ‘indesejados’. Esta a realidade, dura de engolir até os dias de hoje. E da qual muitos intelectuais que viveram aqueles ‘anos dourados’, pré-1964, procuram fugir como o diabo da cruz.

Há dois livros de dois reconhecidos jornalistas gaúchos que desvelam parte daquele cenário sombrio em que o Rio Grande vivia. Um deles é Golpe mata jornal – Desafios de um tablóide popular numa sociedade conservadora, de Jefferson Barros, JÁ Editores, 1999. O outro é A Hora – Uma Revolução na Imprensa, de Lauro Schirmer, L&PM Editores, 2000.

Toda uma geração de jornalistas teve seu ponto de identificação profissional na curta e atribulada trajetória ‘daquele tablóide atrevido’, a Última Hora-RS. Na introdução à obra de Jefferson Barros, o jornalista e editor Elmar Bones destaca que ‘embora pertencendo a uma rede nacional, Última Hora teve personalidade própria no Rio Grande. E se constituiu na principal experiência de jornal popular, num Estado em que a Imprensa sempre teve um comportamento e uma linguagem de classe média’.

Ao contar a trajetória da UH gaúcha, Barros descreve os avanços e recuos dos movimentos progressistas no estado, que culminam, em 1958, com a vitória de Leonel Brizola para o governo estadual. Havia efervescência política e cultural, havia um governador nacionalista no Palácio Piratini. Mas a vitória popular dos trabalhistas e aliados não se refletia na mídia, majoritariamente conservadora. E muito menos nos círculos da aristocracia rural e empresarial, com seu ódio cego a marxismos e nacionalismos. E seu desprezo desde sempre pelas aspirações populares.

Última Hora nasceu no Rio Grande do Sul como tablóide em fevereiro de 1960, para enfrentar os conservadores e sua mídia, ainda dominantes. Enquanto Furacão sobre Cuba aparecia nas livrarias de Porto Alegre, o furacão ideológico da Guerra Fria aumentava no estado governado por Brizola que, em 1959, cem dias após sua posse, encampou a empresa americana Bond and Share para criar a Companhia Estadual de Energia Elétrica.

A direita gaúcha mantinha seu apoio ideológico e de propaganda entre os setores conservadores internos e sua mídia. Ambos na época – como ainda hoje, diz Barros em seu livro – muito poderosos no Rio Grande.

É neste momento histórico que a visita de Sartre e Simone ao estado é vetada ‘pelo núcleo acadêmico reacionário com poder decisivo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul’, relata Barros.

Já Lauro Schirmer descreve mais amplamente o clima de intolerância das alas ultraconservadoras da igreja católica e suas manifestações absurdas, a par de fortes pressões sobre a sociedade gaúcha. Uma delas: o jornal A Hora, por pressão pessoal de dom Vicente Scherer, principal líder católico da época, suspendeu, em 1955, a publicação da coluna ‘A vida como ela é’, de Nelson Rodrigues. Sua linguagem ‘feria a moralidade provinciana’, conta Schirmer

Foi um período de triste memória e de vigência do obscurantismo, com a conivência dos governantes e da mídia, que se omitia não noticiando os atentados à liberdade de expressão. Era como que uma antecipação dos 21 anos de chumbo que seriam implantados em abril de 1964 no Brasil.

Sartre e Simone ‘foram impedidos de vir falar em Porto Alegre’, lembra Lauro Schirmer.

‘Deram conferências em várias cidades brasileiras. A vinda à capital gaúcha estava por se concretizar. Mas ficou na dependência de um convite da Universidade Federal. Que para isso reuniu o Conselho Universitário. Pois, para a vergonha da intelectualidade gaúcha, a Universidade Federal não aceitou convidar o filósofo francês. Um dos membros mais temidos do Conselho, o líder católico, professor e ex-senador Armando Câmara, decretou com sua voz tonitroante: ‘Se esta rameira [Simone] entrar nesta Universidade, eu sairei pela mesma porta para nunca mais aqui voltar’. Câmara, voto decisivo na decisão, fez jus à fama de dirigente de movimentos anticomunistas. Católico e moralista, ao impedir a visita foi duplamente coerente: a UFRGS não só não veria universitários debatendo a revolução, como também não aplaudiria um casal anticonvencional, como Sartre e Simone.’

Agora, 45 anos depois do veto absurdo, Sartre recebe as homenagens merecidas, de parte dos gaúchos: palestras, sessões de cinema com filmes sobre sua vida com Simone, leituras dramáticas de suas peças. Envergonhados, os intelectuais do Rio Grande procuram esquecer aqueles anos obscuros. Terá realmente mudado a realidade? Fica no ar a pergunta.

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Jornalista, filiado à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência