Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo cartorial serve apenas como registro

Não fosse a estreia do impecável longa-metragem de Vicente Ferraz, A Estrada 47 sobre a participação da FEB na luta contra o nazi-fascismo na Itália, os jornalões de sexta-feira (8/5) e dos dias seguintes teriam passado ao largo da epopeia do Dia da Vitória, que marcou os 70 anos do fim das hostilidades na Europa durante a Segunda Guerra Mundial.

Guerras não terminam, continuam – com outros meios, formatos, nomes e pretextos –, mas o Dia V foi aguardado ao longo de quase seis anos (1939-1945) em meio a tantas angústias e esperanças que tornou-se impossível não esperar milagres.

A paz, desta vez, seria para valer.

Não foi. E a grande imprensa perdeu agora magnífica oportunidade para levar aos leitores uma reflexão sobre a precariedade dos sonhos e promessas de um mundo melhor. A maior catástrofe dos últimos 500 anos, a precursora da Guerra Total, converteu-se instantaneamente num conflito demorado, disfarçado, estendido ao longo quase sete décadas. A melancólica constatação não conseguiu desafiar os espíritos intranquilos, críticos, eternamente insatisfeitos que sempre existiram nas redações. Porventura ainda existem? Já não terão sido demitidos nos sucessivos enxugamentos e reengenharias?

A verdade é que os três jornalões, mais o Valor, fizeram a opção linear, cartorial, optaram pelo simples registro das solenidades da véspera que lembraram a data como que entediados pelas setenta efemérides anteriores, insensíveis à possibilidade de tirar partido de desapontamentos para transformá-los em notícia.

Pareceu combinação: engavetar o fato histórico e valorizar apenas o que soasse como novo, moderno. Foi assim que o material sobre a estreia do filme de Vicente Ferraz ganhou naquela sexta-feira um espaço no segundo caderno do Estado de S.Paulo e a capa inteira da “Ilustrada” da Folha de domingo (10/5), com uma competente análise do expert em guerras Ricardo Bonalume Neto.Dia da vitória850

Omissão e surpresa

A omissão da Folha de S.Paulo tornou-se ainda mais lamentável graças ao habitual suplemento pago pelo Kremlin que lembrou o Dia da Vitória com um viés absurdamente russófilo, que mesmo a imprensa oficial soviética em 1945 teria escrúpulos em assumir. O negócio completou-se na edição de segunda-feira (11/5), na nobilíssima Página Três, onde os embaixadores da Armênia, Belarus, Cazaquistão e Rússia subscreveram um aberrante comunicado no qual a Segunda Guerra Mundial é transformada em “Grande Guerra Patriótica”, sua duração encurtada para 1941-1945, eliminada a vergonhosa parceria Hitler-Stalin no esquartejamento da Polônia (1939-1941), e o resto da Europa (França e Inglaterra, inclusive) apresentados como “salvos da escravidão pelo sacrifício e a vontade de ferro do povo soviético”.

O suplemento da Folha foi preparado sem interferência da Redação, informa-se no seu cabeçalho; em outras palavras: é matéria paga disfarçada, opinião clandestina e financiada pelo que antigamente se designava como “ouro de Moscou”. Mas a página “Tendências/Debates” (A-3) tem como objetivo “estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo”. A Folha, “Um jornal a serviço do Brasil”, valida uma colossal fraude histórica e ainda lhe confere status de “tendência contemporânea”. Convém chamar a ombudsman: a Folha está tendo um troço!

Não pode passar despercebido o ostensivo alheamento dos jornalões nacionais com relação ao Dia-V, sugere jogada combinada: na ânsia de cativar o leitorado jovem, digitalizado e incapaz de se debruçar sobre textos mais longos, temas mais densos e episódios do passado, descarta tudo o que à primeira vista não seduz.

Na área dos semanários foi estranha a omissão de CartaCapital, dirigida por Mino Carta, jornalista brasileiro nascido na Itália, aqui chegado em 1946 e filho de um jornalista perseguido pelo fascismo. Na direção contrária, surpreendente o cuidado de Veja em oferecer novamente – tal como aconteceu com o centenário do início da Grande Guerra de 1914-1918 – matéria extensa, equilibrada, bem editada e redigida. Não parece a mesma revista – doida, ligeira, geralmente irresponsável – dos últimos anos.

Uma guerra para não ser esquecida.

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