Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os barões e os príncipes

Permito-me evocar uma passagem do prefácio que escrevi póstumo para o livro A Regra do Jogo, de Cláudio Abramo (270 pp., Companhia das Letras, São Paulo, 1988).

‘Há cidadãos poderosos que caem em prantos com extrema facilidade. Outros freqüentam sofregamente o analista. Contudo, os interesses do grupo, da categoria, do estamento, da classe acabam com qualquer emoção. O ostracismo imposto por Cláudio Abramo, e a alguns outros jornalistas de escol que perderam seus lugares em situação de crise, consta de um dos quadros de vasto enredo destinado a garantir a sobrevida das oligarquias. Belas gravatas e palavras irônicas entram na história, bem como as afecções gastrintestinais que acometem empresários da imprensa quando supõem ouvir o nome dos diretores dos seus jornais pronunciado com encantamento e ternura, como gostariam que fossem os seus. Mas isto está longe de ser tudo. Há condimentos bem mais picantes, digamos assim.

Otavio Frias Filho, diretor da redação e um dos proprietários da Folha de S.Paulo, em entrevista publicada pela revista Playboy de maio de 1988, parece ter uma explicação funcional e política para a ascensão e queda daqueles que define como ‘os barões’ do jornalismo. Trata-se de personagens carismáticas, e entre elas Cláudio Abramo é a mais vistosa. Pelos barões, o jovem Otavio manifesta respeito, com a ressalva da obsolescência, devida à resistente paixão que alimentam pelas mitologias dos anos 70. Pelo jeito, recomenda-se guardá-las em naftalina – com todo o respeito, é claro. Com afetuoso desvelo. Mas seus dias terminaram, só resta mesmo enterrá-los com honra.

A que mitologias Otavio Frias Filho se refere não se entende com clareza. Decerto é difícil distinguir velho e novo neste lugar atrasado. Temos, porém, cidadãos que se têm em conta de moderníssimos, mas até hoje poderíamos classificá-los como Lévi-Strauss definia espécimes da aristocracia paulistana há cinqüenta anos: acham-se muito refinados e não sabem como são típicos. Em todo caso, constatações desse gênero propiciam magros consolos. A oligarquia é típica, mas se mantém o cavaleiro do tempo. A gente apanha e, de quebra, tem de suportar as explicações de quem pretende justificar-se no poder com meras palavras. Fosse só com palavras, estaria apeado.

A concepção de oligarquia não figura na mitologia dos anos 70. Platão, que é mais antigo, já falava nela. A antiguidade da referência não extingue a coisa referida. Nos dias de hoje, a máfia, como poder brasileiro, tem uma estrutura oligárquica, embora uma e outro sejam bastante originais. No caso da imprensa verde-amarela, além dos barões temos os príncipes, os senhores do feudo, e eles não desistem da carteirinha de jornalista porque não se contentam em ser donos de negócio. Esta ambição, aparentemente menor, tem sua razão de ser. Entra no jogo um natural anseio de realização pessoal, admita-se, e nada impede que o patrão tenha forte vocação para jornalista. Mais vale, contudo, o fato de que ninguém é mais confiável para o sistema, o establishment (achem o nome mais adequado), do que o próprio dono do jornal. Não sei se o modelo de Otavio Frias Filho é a Távola Redonda, ou a corte de Carlos Magno, mas nessa estrutura o sistema fica com o papel do imperador.

A presença de profissionais competentes, de grandes jornalistas respeitados pelas redações, atrapalha a sucessão no feudo e compromete os interesses de quem manda, na instância intermediária e na suprema. Reparem: a imprensa brasileira serve o poder porque o integra compactamente, mesmo quando, no dia-a-dia, toma posições contra o governo ou contra um ou outro poderoso. As convergências de todos aqueles que têm direito a assento à mesa do poder entrelaçam-se indissoluvelmente.

No dia 17 de setembro de 1977 Cláudio Abramo foi afastado da direção da redação da Folha de S. Paulo, atendendo a pressões do ministro do Exército, em seguida à publicação de uma crônica assinada por Lourenço Diaféria e tida como ofensiva à memória do duque de Caxias. Ninguém, a rigor, se incomoda com o duque propriamente dito, mas com o símbolo. No caso sobreleva, porém, o pretexto, e resta ver se foi mais dadivoso para o imperador ou para o senhor do feudo. O ministro Sílvio Frota concorria com o general João Figueiredo à sucessão do general Ernesto Geisel, e em função da relevância do seu posto e das duas ambições, era mais cotado na bolsa das apostas. Havia mesmo quem o entendesse qualificado para liberar o enésimo golpe dentro do golpe.

Recordo uma conversa que tive com Octávio Frias de Oliveira no gabinete de Cláudio, nos últimos dias de agosto de 77. Eu tinha informações de que o confronto estava próximo e tudo me levava a crer que a dupla Geisel-Golbery preparava uma esparrela sob medida para o general Frota. Frias não concordava, duvidava das intenções de Geisel, que no seu entender ainda não escolhera o seu sucessor, e dos reais poderes de Golbery. Frota caiu exatamente 25 dias depois de Cláudio, dia 12 de outubro. E Golbery observaria: ‘Mas se foi Frota quem pressionou, por que não chamam Cláudio Abramo de volta à direção da redação?’.

O Merlin do Planalto tinha as suas malícias. Diga-se que entre Cláudio e o velho Frias havia uma estranha relação, tensa, conturbada, e, ao mesmo tempo, muito afetuosa. Eu não duvido um segundo sequer dos sentimentos do velho Frias. Ele se dizia formado com louvor em Cláudio Abramo, pretendendo expor todas as dificuldades da convivência com uma personalidade tão complexa e inquieta. Cláudio podia dizer a mesma coisa de Frias. Um dia, depois de uma discussão muito áspera, eu os vi abraçados com as lágrimas nos olhos. Situações assim me levam a cogitar de razões de Empresa tão imperiosas quanto razões de Estado. Acho que ao afastar Cláudio, sabendo que era para valer fosse qual fosse o desfecho do show-down de Brasília, Frias sofreu bastante. Mas para ele não havia jeito, mais cedo ou mais tarde teria de fazê-lo.

Os baronatos têm de ser liquidados, mesmo que se trate de derrubar os amigos. Os senhores vão em frente, às vezes sentindo-se vítimas, eles próprios, da razão superior. Em diversas oportunidades, eles experimentarão uma sensação de medo, ao desamparo da experiência do barão rebaixado ou demitido. Frias não deve ter maiores queixas dos seus jornais e tampouco dúvidas sobre o seu êxito experimental. Sabe, porém, tudo o que deve a Cláudio Abramo. Uma vasta literatura medrou dentro das fronteiras do seu feudo para esclarecer um certo Projeto Folha – documentos, relatórios, estudos manuais. Páginas e páginas para demonstrar que a verdadeira reforma do jornal se deu depois da queda de Cláudio, o barão. Até que a rapaziada se esforçou um bocado, a ponto de suscitar incertezas quanto à avaliação daquilo que teria de ser mais importante na operação: o próprio jornal ou o Projeto? O velho Frias não terá, porém, incertezas.’

Escrevia ainda em 1988, logo após a morte de Cláudio:

‘Quem compara a Folha de doze anos atrás com a de hoje, descobre quando nasceram as principais inovações, a vivacidade da primeira página, o pluralismo das páginas dois e três, a agilidade e estrutura, a preocupação com o rigor da informação. Com a saída de Cláudio Abramo do Estadão, o estilo literário cartorial teve a sua revanche. Com a saída de Cláudio da Folha, o jornal ganhou excentricidade. É inegável que a Folha cresceu porque em vários pontos soube dar seqüência às idéias do seu criador, mas a essência da reforma está plantada no jornal dirigido por Cláudio Abramo.’

Hoje, escreveria: ‘Trinta anos depois, a Folha não consegue ser sequer a sombra desbotada do jornal de Cláudio’.

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Diretor de redação da revista Carta Capital e escritor