Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Preservação da memória e o papel dos editores

O principal atributo de um editor de jornal é, em minha opinião, escolher,
entre dezenas ou centenas, as notícias mais relevantes para a sua editoria. E
para decidir sobre esta relevância, é bom que se diga logo, não se podem
utilizar fórmulas prontas e acabadas pois inumeráveis são as características de
cada veículo e de seu público-alvo, que varia, inclusive, de uma região para
outra desta grande nação brasileira.


Na última Copa do Mundo ficou evidente a inventividade dos repórteres,
certamente instigada pelos editores, na produção das notícias. Foram computados
dados os mais irrelevantes para, comparados a outros tão irrelevantes quanto os
primeiros, estabelecer algum recorde a ser quebrado ou algum tabu a ser
desafiado: uma lição de mau gosto que talvez se pudesse justificar pela
concorrência, nunca pelo genuíno desejo de informar.


Mas, apesar de praticamente infinitas as possibilidades de um jornal produzir
notícias existem algumas delas que, em determinadas circunstâncias, se impõem
pelo bom senso às idiossincrasias de cada editor. São estas, a meu ver, o
divisor de águas entre um mero burocrata da pauta manjada e um editor de
sensibilidade e competência.


A história que passo a relatar a seguir, e seu potencial de gerar notícias, é
uma destas que, no meu modo de pensar, colocam em xeque a sensibilidade dos
editores de jornais e de portais noticiosos e emissoras de TV de Teresina, única
cidade do Piauí que mantém jornais diários. Poderia mesmo servir de teste em uma
Escola Superior de Jornalismo no Piauí ou mesmo no Rio ou em São Paulo.


Notícia inédita


No ano de 1897, em uma localidade denominada Campos que, na época, pertencia
à zona rural de Oeiras (PI), foi inaugurada uma indústria denominada ‘Fábrica de
Laticínios dos Campos’. A fábrica foi erigida nas chamadas ‘Fazendas Nacionais’
– fazendas que foram, em 1760, expropriadas dos jesuítas pelo marquês de Pombal
e passaram a ser patrimônio do rei de Portugal, do imperador do Brasil e,
finalmente, da Nação Brasileira – em virtude de um acordo de arrendamento feito
por seu proprietário, o visionário cientista Antonio José de Sampaio, e o
Tesouro Nacional, em 1889. Nele, Sampaio se comprometia, entre outras coisas, a
melhorar a qualidade da criação de gado com a introdução de reprodutores de raça
fina, montar uma fábrica de laticínios com máquinas e técnicos europeus e
desenvolver a lavoura.


A inauguração da fábrica, para onde foram levadas máquinas suíças (em carros
de boi que percorreram cerca de 180 quilômetros, construindo-se pontes para
travessia de rios e criando-se, no trajeto, o leito carroçável percorrido),
satisfazia, portanto, um dos itens do acordo.


Bem sei, isto ocorreu há muito tempo e, apesar do fato de quase ninguém no
Piauí saber disto, o que revestiria a notícia, pelo menos, de ineditismo,
reconheço perfeitamente que falar da inauguração (em 1897) da ‘Fábrica dos
Sonhos do Doutor Sampaio’ é noticia petrificada pelo gelo absoluto. Não se
trata, portanto, disto. Inclusive porque a aludida fábrica, que produziu
manteiga da mais alta qualidade e chegou a ser a maior fábrica de manteiga da
América do Sul, não mais existe, restando apenas, arruinado, o velho e ainda
imponente edifício que a abrigou.


Patrimônio da Humanidade


E é deste edifício, encravado na pobre e esquecida cidade de Campinas do
Piauí, cuja população é basicamente constituída por filhos e netos de antigos
trabalhadores da fábrica, que podem e devem ser extraídas notícias. A mais
quente delas, sem ironia, o incêndio que se iniciou nas primeiras horas da
madrugada do sábado 15 de julho de 2006 e foi apagado por heróicos moradores da
cidade.


Diante do fogo, que afetou apenas uma parte lateral do edifício, pude ver
mulheres chorando, gente simples do povo para quem, com toda a razão, o prédio é
muito mais do que uma simples ruína. Não é esta a impressão que tivemos da mídia
impressa, virtual e televisiva. Tudo isto, além de dezenas de fotos
ilustrativas, foi repassado a todas elas. Ainda não pudemos sentir o resultado
desta ação informativa, por nós gerada.


Quando falo nós refiro-me à Fundação Nogueira Tapety-FNT, entidade em que
trabalho e que promove, há dias, uma campanha pela restauração da Fábrica de
Laticínios dos Campos. O sinistro, coincidentemente ocorrido alguns dias depois
da campanha deflagrada, revigorou, ainda mais, o ânimo dos que entendem que a
restauração da Fábrica de Laticínios dos Campos, para mim um Patrimônio da
Humanidade, não pode mais sofrer qualquer adiamento.


Omissão intolerável


Em 5 de janeiro de 2005, a Fundação Cultural do Piauí (Fundac) fez saber à
imprensa que a Fábrica de Laticínios dos Campos estava inscrita no Ministério da
Cultura e assim credenciada a receber os benefícios da Lei Rouanet, também
conhecida com Lei do Mecenato. Tratava-se, assim como se trata ainda hoje, de
encontrar uma empresa disposta a financiar a restauração da fábrica para gozar
de isenções fiscais.


Mas que entidade decidir-se-á a financiar a restauração de um prédio
esquecido numa pequena cidade do sertão do Piauí se não houver um apelo
contundente, uma mobilização real do povo que possa sensibilizá-lo? Afinal, há
obras que, mesmo muito mais onerosas, conferem muito maior prestígio ao
praticante de mecenato. E é por isto que é hoje tão necessário para nós contar
com a sensibilidade dos que definem, para o bem ou para o mal, o que é, ou deixa
de ser, notícia do interesse dos piauienses.


Torcemos para que esta campanha sensibilize a maioria, obrigando os demais a
seguir por este caminho. Aquele incêndio (ainda não noticiado pela imprensa) se
para algum bem veio foi para mostrar o quanto é fácil destruir a memória de um
povo. Todos os segmentos responsáveis da sociedade devem mobilizar-se para esta
luta e a omissão da imprensa nessa hora seria intolerável!

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Artista multimídia Oeiras, PI