Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Um artesão do texto primoroso

Luiz Fernando Mercadante (nascido em São Paulo, mas meio mineiro e meio carioca) fez, na revista Realidade (final dos anos 1960, começo dos 70), jornalismo da mais fina qualidade. Realidade era uma revista de reportagem, então Mercadante produzia uma das 13 ou 14 reportagens que faziam o conteúdo de cada edição.

Eram “grandes reportagens” não só no sentido do tamanho mas também no sentido da ambição. Eram peças jornalísticas com pesquisa, reflexão, vivência e busca de profundidade, diferentes daquelas da correria (e não raro superficialidade) do jornalismo diário.

O texto de Mercadante cumpria o que Gabriel García Márquez exigia de uma peça para se tornar “grande reportagem”, conforme seu livro Vivir para Contar.

– A grande reportagem – escreveu García Márquez – é não apenas uma forma estelar de informação, senão um gênero literário, equivalente ao romance.

(E García Márquez entende bem tanto de reportagem quanto de romance…)

Ironia fina

Em Realidade, Mercadante – e aí ao lado principalmente de outro repórter, José Carlos Marão – fez o que os acadêmicos hoje chamam de “jornalismo literário”, uma peça jornalística com “qualidade literária”, sendo isso o que for.

Seu texto era elegante, delicado, preciso, gracioso, com malícia e com a palavra certa em cada lugar. O tempo todo com uma fina ironia que levava muita gente a dizer que ele era um “repórter machadiano”.

Realidade tinha algumas “feras” na reportagem, gente que escrevia como se estivesse combatendo, um comportamento muito apropriado para aqueles tempos de chumbo. Assim eram Narciso Kalili, Eurico Andrade, Roberto Freire e outros. Mas com Mercadante o estilo era outro.

Como pessoa, Mercadante era adorável. Estava sempre envolto em certo mistério. Não se sabia exatamente onde era sua casa ou se continuava “naquela casa”… Chegava e saía da redação em horas desencontradas. Num meio em que o pessoal mal se vestia com uma calça jeans e uma camisa comum, Mercadante tinha ternos bem cortados e os usava aparentemente com gosto. Na cabeça da “rádio-peão”, ele se vestia assim porque, a qualquer hora, podia ser chamado para um encontro exclusivo com o líder da oposição, um banqueiro poderoso ou o general-presidente.

Num clima de governo militar, Mercadante dava aos outros repórteres a gostosa sensação de que nenhum deles seria encarregado de uma reportagem de encomenda, para agradar aos militares, para diminuir a má vontade com a revista ou eliminar a suspeita que corria nos círculos do poder de que na redação da Realidade havia muitos “subversivos”.

Ele enfrentava essas pautas “delicadas” e saía delas ileso, com a ironia inimputável que conseguia passar em seus textos. Assim, além das pautas puramente jornalísticas, Mercadante ainda tinha de fazer as “pautas saia-justa” que eventualmente atendiam ao interesse da direção da revista ou da empresa. Em ambos os casos, o texto era aquele – preciso, brilhante, de causar inveja.

Orgulho incontido

Após sua passagem por Realidade, Mercadante foi para a TV Globo. Como chefe do jornalismo em São Paulo, teve importante papel no reforço da “praça de São Paulo”, que visava aumentar o poder de fogo do Jornal Nacional. Acabou chamado para um posto no Rio, mas a tevê não era sua praia.

Nada supera a imagem de Mercadante como jornalista do papel impresso, fazendo (antes em jornal, depois em revistas) a “grande reportagem” (no parâmetro de García Márquez), criando textos que hoje figuram nas aulas de “jornalismo literário”, deixando na gente uma ponta de orgulho por ter convivido com pessoa tão generosa, tão delicada e tão especial.

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[José Hamilton Ribeiro é jornalista e foi colega de Luiz Fernando Mercadante em Realidade e na TV Globo]