Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornalista de bombachas

Só agora, lendo o artigo “As duas implosões de Manchete”, no Observatório da Imprensa, soube que Justino Martins foi agredido por ninguém menos que o Niskier. O máximo que posso dizer dele é que ele era tido e havido, na cozinha da casa do Justino, como um boboca.

Conheci muito bem o jornalista Justino. Namorei seu filho Carlito durante três anos e fiquei muito amiga do “sogro”, como o chamava. Muito aprendi com ele: sobre cinema, tudo que sei.

Assistimos, ele, o Carlito e eu, aos três grandes festivais de cinema que o Rio teve a alegria de apresentar naquele final da década de 1950. O do cinema americano, no MAM, o do cinema francês, no teatro da Maison de France, e o do cinema russo no auditório de O Globo. E éramos fregueses do Art-Palácio para ver os sensacionais italianos de então.

De cada sessão saíamos para comer qualquer coisa e para receber uma aula – com perguntas e respostas – sobre o filme que víramos. Ele analisava conosco o diretor, o enredo, as interpretações, a trilha sonora, tudo. E se havia algum livro vinculado ao “scénario” ou ele nos emprestava o livro ou, quando tinha ciúme do livro ou se não o possuísse, ele nos indicava título e editora!

Jazz na vitrola

De literatura francesa, então, valha-me Deus o que aprendi com ele. Sua biblioteca não era vasta pois ele não morava em palacetes, mas os livros que tinha eram joias das quais cuidava com muito carinho. Justino tinha livros com dedicatória afetuosa de autores com os quais conviveu em Paris, como, por exemplo, o primeiro volume do Journal, de André Gide.

Sobre fotografia, então, nem sei como explicar o que era sair com ele e sua Rolleiflex e aprender como olhar as pessoas e a cidade para depois beijá-las (expressão que ele usava) com a câmera.

A foto mais bonita que já vi do Coliseu de Roma é uma onde aparecem em primeiro plano Lucinda, sua primeira mulher e mãe do Carlito, o Carlito então 15-16 anos, num Volkswagen conversível estacionado ao lado do Arco de Constantino e ao fundo, imenso, magnífico, o Coliseu. A foto é uma poesia!

Foi em sua casa que comecei a ler os Cahiers du Cinema – a edição era aguardada com ansiedade. Revista que ele não emprestava, podíamos ler ali, ao lado dele. Ele fez muitos amigos entre os cineastas e fotógrafos quando morava em Paris e alguns eu conheci quando fui para lá em 1960. Bastava falar o nome do Justino que as portas se abriam.

Tenho dois livros que ele me ofereceu. O Aimez-vous Brahms?,com a dedicatória “Aimez-vous Sagan?”,recebido num aniversário, e o Eugénie Grandet, de Balzac, com as seguintes palavras: “Um beijo de seu ex-sogro (eu sempre sou ex-tudo na vida…)”. Para minha vergonha ele descobrira que nós, o filho e eu, o chamávamos de Père Grandet, porque nem sempre ele estava disposto – ou podia – fazer todas as vontades do filho.

Já ia me esquecendo: aprendi com ele a fazer arroz de carreteiro. E nessa lembrança veio a imagem do Justino como ele andava em casa: de bombachas e descalço. E sempre ouvindo jazz. E sempre, quando nos despedíamos, o pedido para o Carlito: “Vem cá, não vai dar um beijo no pai?”

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[Maria Helena Rubinato é professora e tradutora]