Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Família de Joelmir Beting planeja criação de memorial

“Encarar a vida sem Joelmir Beting é uma incógnita, pois ele serviu de bússola a duas gerações de brasileiros, ao decifrar diariamente a economia em jornal, revista, rádio, TV e internet.” A frase é de Lucila Beting, com quem Joelmir se casou em 1963 e trabalhou dos anos 1980 até 2000. Na semana da morte do marido, Lucila decidiu voltar ao trabalho: quer transformar seu legado em acervo aberto a “todos que se acostumaram a ler e ouvir seus comentários, marcados pela sabedoria da simplificação, por bom humor e estilo elegante”.

A forma ainda não está definida, mas o projeto começa a ganhar contornos: a ideia é abrir textos, análises, comentários, reportagens e entrevistas para consulta do “público que ele tanto respeitou, público que também o amou e que se declara, nas muitíssimas manifestações agora recebidas, um pouco órfão”, diz Lucila. “Museu Joelmir Beting” era o nome dado por ela, de brincadeira, às gavetas e prateleiras do escritório onde juntava fotos, fitas, vídeos e filmes, recortes, revistas e jornais, medalhas, convites, troféus e cartazes referentes à sua trajetória. Esse legado será a base do que chama de Memorial Joelmir Beting.

Foram 55 anos desde o primeiro emprego, em 1957, como revisor nos jornais A Tarde e O Esporte – onde depois foi repórter de futebol. Em 1966, começou a escrever, na Folha de S.Paulo, uma coluna sobre o mercado de automóveis – na época em que, como Joelmir brincava, a economia servia para “separar o turfe dos classificados”. Com o dito milagre econômico, o assunto ganhou espaço nos jornais e, em 1968, Joelmir tornou-se editor de economia do jornal. Em 1970, inaugurou a coluna diária “Notas Econômicas”, publicada simultaneamente por até meia centena de jornais brasileiros durante mais de três décadas.

“Gol de placa”

Efeito da enorme repercussão de sua coluna, Joelmir foi convidado a fazer comentários em emissoras de rádio e TV. Nos anos 1970, já falava diariamente, em cadeia de 25 emissoras brasileiras, pela rede da Jovem Pan. Foi comentarista das rádios Gazeta, Bandeirantes, Globo e CBN. Na TV Record, apresentou o primeiro programa de TV diário dedicado à economia (Reunião de Diretoria), sucessor de seu programa semanal, Multiplicação do Dinheiro, da TV Gazeta.

Consagrado como inovador da linguagem econômica, passou a ser disputado pelas maiores redes de TV. Foi um dos primeiros âncoras em telejornais brasileiros e comentarista de economia da Rede Globo (de 1985 a 2003), e do Grupo Bandeirantes de Televisão (de 2004 até o mês passado). Escreveu dois livros, Na Prática, a Teoria É Outra e Os Juros Subversivos.

A empreitada, agora, é reunir tudo o que escreveu, ao longo desses anos, em jornais, revistas, rádio, TV e internet. E, pelo memorial, tornar o material disponível para estudantes, economistas, jornalistas, professores, historiadores e o público em geral. No memorial, além da análise econômica, a atuação de Joelmir no jornalismo esportivo será um capítulo especial. Ele se destacou nessa área, por exemplo, por ter sido dele a ideia e a realização da placa em homenagem a um gol histórico de Pelé, origem da expressão “gol de placa”.

Projetos e livros

Nas últimas décadas, estudos e pesquisas acadêmicas tiveram Joelmir como tema. O memorial pretende reunir o maior número delas. Promover a análise da obra do “tradutor do economês”, ou “Chacrinha da economia”, como chegou a ser chamado, é, sem dúvida, tópico importante para a história da imprensa brasileira.

Boa parte de textos de Joelmir será, por sugestão de Lucila, transformada em material. Ela também estuda que destino dará à sua coleção de livros e documentos. Para ele, importante era o livro ser lido. Fazia doações regulares a bibliotecas, não pedia de volta um volume emprestado e até dava livro ainda não lido a quem demonstrasse interesse. Assim, a ideia é doar a coleção a alguma “faculdade de economia nova, ou pequena, preferentemente da periferia”, como fazia com duplicatas ou livros que não queria reter em seu escritório.

A prioridade do memorial será atender os jovens. Eu, cunhada de Joelmir e sua colega na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo nos anos 1970 a 1990, e com ele na Bandeirantes desde 2004, estarei nesse projeto, ao lado de Lucila e outros jornalistas da família. Para Joelmir, a educação era causa e efeito do emprego – ou da falta dele. A desocupação entre os mais jovens era seu tema recorrente, mesmo em tempos de expansão na oferta de emprego.

Chamo atenção para o que ele escreveu em julho de 2011: “A economia e a sociedade tentam fazer a transformação do Brasil pela educação. Mas antes o país terá de fazer uma revolução na própria educação. O mercado de trabalho em expansão está desajustado. Veteranos ocupam o vácuo de reposição da mão de obra qualificada mais jovem e mais escassa. O estudo virou trabalho, o trabalho virou estudo. Só a educação brasileira ainda não foi avisada disso. Ela continua de costas para o mercado de trabalho em ebulição, nos níveis básico, médio e superior.”

Joelmir falava pouco sobre o que faria quando se aposentasse – aliás, “se se aposentasse”, como dizia. E não parou. Trabalhou até quando pôde e deixou projetos e livros inacabados. O desafio da família é fazer com que ele continue a formar as novas gerações de brasileiros.

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[Cecilia Zioni é jornalista, foi repórter e editora na Folha de S.Paulo, no Estado de S. Paulo e na Gazeta Mercantil, de 1970 a 2001; desde 2004, trabalhava com Joelmir Beting]