Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Textos continuam a luzir entre os novos

Mesmo quando não é repentina, a morte é sempre inesperada. Porque acreditamos que a morte é exclusividade dos outros, temos por certo que os amigos não morrem. Sou por isso surpreendido, neste fim de tarde de um domingo abafado, com a notícia da morte de Décio Pignatari. Havia quanto tempo que não o via? Apenas de vez em quando tinha notícias suas, que confirmavam continuar o irreverente que sempre foi.

Corro à estante à procura do poema crítico-visual que marcou minha adolescência. Tenho a sorte de encontrar com rapidez sua coletânea Poesia pois É Poesia. Não sei se será possível reproduzi-la. Se o for, tanto melhor. Na dúvida, desdobro-a à minha frente. Reproduz-se a nota de um dólar e, em lugar de o centro ser ocupado por uma figura respeitável da história norte-americana, expõe-se a gravura de Cristo com sua coroa de espinhos. No verso da nota, aparece o mais inesperado: em vez do nome “Cristo”, tinha-se o cifrão de nossa moeda, Cr, seguido pelo cifrão do dólar, com o “S” atravessado por uma barra e, a seguir, “isto”. O nome próprio tornava-se o símbolo de nossa dependência, tornada mais explícita e mais ampliada pela complementação da frase “é a solução”. O Cristo atualizado é um Cristo de cifrões.

Não serei desonesto comigo mesmo se disser que a solução crítico-poemática foi uma das minhas primeiras e mais fortes amarras para minhas opções, tanto a política como a profissional. Como a política? Não é preciso esforço para esclarecer: é suficiente saber que fui o benjamim dos aposentados pelo AI-1, de outubro de 1964. Como a profissional? Aí sim, será preciso esclarecer: a montagem parodística de Décio foi um dos meios pelos quais soube que não queria empregar minha vida senão em conhecer e sempre mais estudar a poesia.

Etapa biológica

Imediatamente à montagem referida aparecia a indicação “stèle pour vivre nº 4”, trazendo abaixo “mallarmé vietcong”. Seguiam-se as combinações entre texto e imagem – não esqueçamos que Décio foi um dos principais propagadores da semiologia entre nós – que não posso reproduzir. Delas apenas direi que constituíam uma semiologia que o tempo acabou por desgastar. Acreditávamos que o mundo podia ter outra face e que ela seria modelada pela poesia revolucionária de Mallarmé e pela guerrilha, no caso a asiática.

O tempo se encarregou de mostrar nosso engano e ainda nos concedeu que sobrevivêssemos. Mas, se o vietcong desapareceu, os poetas revolucionários continuaram a luzir entre os novos.

Mas como novos, então e agora?! Será ilusório então dizer que ser novo não se confunde com uma etapa biológica? Ao menos, quando o novo se converte em algo, por exemplo em texto, deixa de ser uma exclusividade do biológico. Não é precisamente isso que nos faz pensar no verso do próprio Décio, por mais que fosse parte de um poema intitulado “Epitáfio”?

“Lento e fundo é o ar de tuas tardes nos teus poros”.

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[Luiz Costa Lima é crítico literário e professor emérito da PUC-Rio]