Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um mestre de duas culturas

Durante 43 anos tive com Robert Eugène Appy um relacionamento praticamente diário, de amigo, de colega e, principalmente, de aprendiz. Nos últimos 15 anos trabalhamos em salas contíguas no Estadão, ele como editorialista da coluna Opinião do caderno de Economia do jornal, eu como seu copidesque, além de editorialista do jornal também.

E por que – perguntarão os colegas – um jornalista com o profundo conhecimento da economia, como o Appy, e com bem mais do que 60 anos de exercício da profissão, precisaria que seus textos fossem copidescados? Ele mesmo explicava, rindo: “Já começo a esquecer o meu francês, sem ter aprendido direito o português”. Não era verdade, nem uma coisa, nem outra. Conhecia profundamente as duas línguas, a ponto de discutir com revisores do Estadão questões de semântica, de sintaxe e até gramaticais da nossa língua. Mas pensava principalmente em francês, antes de pensar ou escrever em português. Por isso, na pressa de entregar os textos, muitas frases ou imagens saiam “afrancesadas”. Meu trabalho consistia em aportuguesar o afrancesamento, nada mais.

A propriedade, a precisão, a concisão e a clareza do seu raciocínio e das suas análises – sempre lúcidas – dispensavam qualquer retoque. Não era uma coluna assinada. E não suscitava aplausos, vaias ou críticas de milhões de leitores. Mas a elite empresarial, financeira, política e econômica deste país sabia quem a escrevia. Por isso, todas as tardes, eu ouvia, da minha sala, o tilintar do telefone dele e o “alô”, com um sotaque que não deixava dúvidas sobre quem estava atendendo o telefone.

As chamadas vinham dos mais importantes empresários, banqueiros, autoridades que por longos minutos discutiam as opiniões que a coluna emitia, contra ou a favor do interlocutor. Não sei de nenhum ministro da Fazenda brasileiro, dos últimos 60 anos, que não tenha telefonado uma ou mais vezes para o Appy ou entrado na sua sala no

jornal para uma conversa a portas fechadas muitas vezes. O mesmo posso dizer de presidentes do Banco Central, de diretores de órgãos públicos, de institutos de pesquisa, de Faculdades de Economia, de organismos internacionais, de diretores do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial, que eram seus amigos, ex-colegas de estudos, admiradores: Michel Camdessus, Jacques De La Rosière, Giscard D’Estaing são algumas figuras mundialmente renomadas que testemunhei dialogarem com Robert Appy – fosse em Washington, nas reuniões do FMI e do Bird, que cobrimos muitas vezes juntos, fosse aqui mesmo em São Paulo, em Paris, ou Londres.

Na mosca

Robert Appy veio para cá em 1953 (eu o conheceria em 1958), deixando o jornal Combat, na França, onde se iniciara – jornal da resistência francesa contra o nazismo – e foi contratado pelo Estadão, por indicação de Gilles Lapouge, que até hoje é correspondente do jornal em

Paris, mas que regressara então à sua terra natal depois de três anos em São Paulo. Appy foi portanto, um dos fundadores da Editoria de Economia do Estado, sob a chefia de Frederico Heller. A eles logo se juntaria Alberto Tamer, recentemente falecido. Este tripé de pioneiros daria corpo à mais importante seção de economia dos jornais brasileiros, nos quais, até então, os assuntos econômicos eram tratados de maneira dispersa, eventual, pouco profissional e, no mais das vezes, apenas como petardos das batalhas político-eleitorais.

Em 1970 eu trabalhava na revista Realidade, da Editora Abril, onde Pimenta Neves foi me buscar para me contratar como editor de Economia da revista Visão, então dirigida por ele. Foi meu primeiro contato profissional com Appy, que já colaborava com a revista. Ali batalhamos juntos por quatro anos, sob as ordens de Saïd Farhat, então proprietário da Visão. Em 1974, com a venda da revista para o Henri Maksoud, eu senti que não teria nem compatibilidade de ideias nem espaço para o meu trabalho.

O Appy me disse então que o dr. Ruy Mesquita estava em busca de um editorialista de economia para o Jornal da Tarde, uma vez que o Rolf Kuntz, titular do cargo, fora contratado, justamente, para o meu posto na Visão. Foi uma felicíssima troca de passes, pelo menos para mim, na época, não sei se para o Rolf. Hoje trabalhamos muito bem juntos, como editorialistas do Estado.

Durante 11 anos trabalhei para o dr. Ruy como editorialista do Jornal da Tarde e em convívio diário com o Appy, acumulando o trabalho de comentarista econômico da TV Cultura, primeiro, e da TV Globo, a partir de 1977. Em 1985 afastei-me da imprensa escrita em função de projetos pessoais que não dariam muito certo, ficando apenas nas tevês: Manchete e depois Record. Em 1998 voltei para o Estadão, já então sob direção do dr. Ruy e ao reencontro com o mestre Robert Appy.

Uma última palavra: quem se der ao trabalho de passar os olhos na coluna Opinião, do caderno de Economia da Estadão, aleatoriamente, desde o inicio do mandato Dilma Rousseff, perceberá que o que está afligindo hoje o seu governo, em termos de baixo PIB, alta da inflação e perplexidade no câmbio, foi nitidamente prognosticado pelos textos do melhor jornalista analista da economia brasileira que conhecemos até há pouco: o mestre de duas culturas, Robert Eugène Appy.

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Marco Antonio Rocha é jornalista