Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um grande líder, mas escorregou em algumas áreas

Quando eu era criança, o centro de meu mundo era minha avó materna, Bosica Balich, que eu chamava de Baba. Meu pai e minha mãe trabalhavam, e era Baba quem cuidava de mim naqueles dias interminavelmente longos da infância.

Tendo crescido com as privações da Primeira Guerra Mundial na península balcânica, Baba tratava a comida com seriedade. Se uma casca de pão caía da mesa, ela a pegava imediatamente, beijava e fazia o sinal da cruz antes de comê-la. O pão nunca podia ser desperdiçado.

A paixão dela era sua pequena horta. Quando o sol da manhã sul-africana se elevava no céu, e ficava quente demais para continuarmos a trabalhar, nós nos acomodávamos na sombra profunda dos galhos retorcidos que cobriam uma pedra grande, em forma de domo.

Baba enxugava o suor da testa e dava baforadas em seu primeiro cigarro do dia, enquanto eu “podava” os ramos internos de uma árvore pouco interessante do Highveld, para deixar nosso refúgio ainda mais parecido com uma caverna.

Aqueles momentos sentados com ela sobre a pedra áspera eram o ponto alto do meu dia, porque aquela era a hora das histórias.

As histórias de Baba eram em sua maioria europeias, como a de Chapeuzinho Vermelho, mas com um toque de crueldade que foi suprimido nas versões inglesas que eu leio para meus filhos.

Sede secreta

Logo atrás de nosso refúgio, do outro lado de uma cerca de arame farpado enferrujado, ficava a fazenda vizinha, Lilliesleaf.

A fazenda era a sede secreta do proscrito Partido Comunista da África do Sul e era onde se reuniam o PCAS e membros da ala armada do Congresso Nacional Africano.

Foi ali que Nelson Mandela, Govan Mbeki, Walter Sisulu e outros tramaram a derrubada do regime do apartheid.

Em julho de 1963, quando eu ainda não tinha um ano, minha avó notou que um carro tinha começado a passar períodos muito longos estacionado no começo da entrada da nossa propriedade, que corria paralela à entrada de Lilliesleaf.

Um homem branco passava horas sentado sozinho no carro. Minha avó levou uma térmica de café para ele e confirmou sua suspeita de que ele era policial.

Poucos dias depois, a polícia invadiu Lilliesleaf e prendeu líderes do CNA. O próprio Mandela tinha sido preso no ano anterior numa barreira policial numa estrada, aparentemente graças a uma informação recebida da CIA.

Ele estava se fazendo passar por caseiro de Lilliesleaf, e a ordem de prisão foi para “David Motsamayi, caseiro e cozinheiro”.

As prisões levaram ao famoso julgamento de Rivonia, em 1963-64, no qual Mandela, do banco dos réus, fez o discurso em que disse “estou preparado para morrer”.

Dividido

A libertação de Mandela, ocorrida em 1990, foi uma série de acontecimentos bastante surreal para mim. Como fotógrafo iniciante, fiquei eletrizado quando uma agência britânica me pediu para cobrir o assunto.

Era uma grande oportunidade para eu me firmar na profissão, mas eu estava dividido. Também tinha conseguido acesso a uma cerimônia sigilosa no extremo norte do país, marcada para o mesmo dia.

A distância entre a penitenciária de Pollsmoor, onde estavam acampadas equipes de TV do mundo, e o misterioso cercado de Modjadji era de 2.000 quilômetros.

Decidi ir para o norte, me afastando da libertação de Mandela. A chance de documentar um ritual secreto no reino da legendária Rainha da Chuva, a origem da Ayesha do livro “Ela”, de sir H. Rider Haggard, pesou mais.

Poucos meses depois, as “townships” [áreas reservadas para os não brancos] em torno de Johannesburgo explodiram em violência entre o CNA e o Partido da Liberdade Zulu Inkatha.

Para minha sorte profissional e meu infortúnio pessoal, fotografei dois assassinatos no primeiro mês de violência.

O primeiro foi de partidários do Inkatha matando um suposto partidário do CNA.

Foi a primeira vez que eu testemunhei um assassinato, e fiquei horrorizado –especialmente por não ter tentado intervir de alguma forma.

No segundo caso, partidários do CNA apunhalaram e queimaram vivo um homem que teria sido do Inkatha.

Dessa vez, tentei repetidas vezes impedir o assassinato, mas sem sucesso. Foram essas imagens que depois me deram um Pulitzer, entre outros prêmios.

O incidente foi filmado pelo programa “Panorama”, da BBC, que mais tarde procuraria Mandela para pedir seus comentários sobre as imagens que eu tinha feito.

Mandela respondeu que era preciso entender que um homem branco tinha feito essas imagens –logo, a meta era mostrar o CNA como sendo bárbaro. Fiquei arrasado.

Político por inteiro

Fotografei muito Mandela ao longo dos anos. Ele sempre reconhecia os correspondentes regulares e nos cumprimentava calorosamente.

Duvido que ele tenha me identificado como o fotógrafo que ele tinha injuriado publicamente. Ou talvez sim: Mandela era um político por inteiro, quase nunca deixando que seus sentimentos pessoais atrapalhassem sua disciplina política.

A vida de Mandela como futuro presidente foi repleta de drama, tanto político quanto pessoal. Enquanto liderava as negociações para pôr fim ao governo branco, ele combatia as tensões internas do CNA, ao mesmo tempo em que a violência ceifava milhares de vidas.

Enquanto se desenrolavam os últimos dias do apartheid, a liderança de Mandela foi quase sempre impecável.

Ele aproveitou cada incidente para manter a pressão sobre o regime branco nas negociações prolongadas tendo em vista uma África do Sul não racista.

Mandela deixou a marca de sua personalidade sobre o CNA naquele período, especialmente pela aproximação com adversários políticos como africânderes de direita e antigos líderes de bantustões. Mas ele escorregou em algumas áreas críticas.

Um escorregão foi o fato de ele nunca ter condenado sua segunda mulher, Winnie, pelos excessos do poder revolucionário que levaram à morte do menino ativista Stompie Seipei, sequestrado e assassinado por um de seus guarda-costas.

Outro foi ter ignorado o perigo que a Aids representava para o país. Mandela simplesmente a ignorou, em parte, possivelmente, devido à propaganda do regime branco, que dizia que a Aids era uma doença trazida dos campos do CNA no exílio.

Outro escorregão dele foi ligado à chamada “Guerra dos Albergues”, que João Silva e eu descrevemos em “O Clube do Bangue-Bangue”.

Mandela, Winnie e Chris Hani [morto em 1993] geralmente eram os líderes que chegavam ao palco de um massacre ou que assistiam aos enterros de partidários do CNA mortos nos confrontos.

Isso me levou a acreditar que ele sentia verdadeiramente pelas mortes dessas pessoas, mas, com o passar do tempo, revi provisoriamente minha opinião.

Na época, pareceu muito importante, e Mandela discursava para os jovens “leões”, rapazes e garotas que estavam combatendo e morrendo nas ruas empoeiradas em nome da libertação.

Com o passar dos anos, as vidas daqueles jovens leões não melhoraram, e seus sacrifícios não foram recompensados; isso me faz pensar que foi tudo um espetáculo secundário sangrento.

Sem frutos

Hoje, a maioria daqueles antigos soldados mirins não come dos frutos da liberdade. Eles são impossíveis de empregar, pois abriram mão da educação em prol da revolução.

Membros do CNA que têm contatos importantes ascendem até a nata da sociedade através de acordos comerciais privilegiados, e os anônimos soldados rasos vivem e morrem na pobreza.

Mandela trabalhou incansavelmente na campanha antes da eleição de 1994, e o CNA venceu sem dificuldade.

Vasculhando minhas caixas de imagens, fico espantado com a frequência com que eu fotografei Mandela. A maioria dos negativos me parece estranha, como se outra pessoa tivesse feito as fotos.

Apesar de algumas falhas, Mandela mostrou ser um grande ser humano e um grande líder; a meu ver, um homem sem precedentes na política moderna.

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Greg Marinovich é fotojornalista e coautor de O Clube do Bangue-Bangue – Instantâneos de uma Guerra Oculta, sobre a violência na África do Sul de 1990 a 94