Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As mil e uma noites de Coutinho

Morto tragicamente no domingo, Eduardo Coutinho (1933-2014) foi um dos mais originais e marcantes artistas a dedicar-se ao cinema no Brasil. Para sorte do documentário, abraçou o gênero, tornando-se o maior documentarista nacional e um dos maiores do mundo. Com “Cabra Marcado para Morrer” (1984), fez ao mesmo tempo o principal filme sobre o impacto trágico do golpe militar de 1964 e modernizou o longa documental brasileiro. A partir da segunda metade dos anos 1990, voltou a renovar-se e a renovar essa produção com seu “cinema de conversa” (“Edifício Master”). Na última década, continuava a reinventar-se e surpreender-nos (“Jogo de Cena”).

A falta que já nos faz é imensa e irreparável. Não tivesse ele se dedicado a um gênero cinematográfico até há pouco eminentemente periférico tal como o documentário, seria a todos óbvio que é uma perda para a cultura brasileira similar apenas a de um Villa-Lobos, um Jorge Amado, um Drummond, um Niemeyer, uma Tarsila, um Glauber. Somos todos órfãos de Coutinho.

Conheci-o em 1993, em meio provavelmente a maior de suas crises com a profissão cinematográfica. Eu dirigia pela primeira vez o Museu da Imagem e do Som de São Paulo e o procurei visando trazê-lo para um renovado projeto de documentários nacionais no museu. A menos de uma década do lançamento consagrador de “Cabra…”, aqui e mundo afora (vencera o Cinéma du Réel de Paris, à época o principal festival mundial dedicado ao documentário), Coutinho sofria com a impossibilidade de conseguir lançar seu longa-metragem seguinte, “O Fio da Memória” (1991), uma coprodução internacional pautada pelo centenário em 1989 da abolição da escravidão no país que ele transformou numa obra densa sobre a cultura negra brasileira.

Durante a meia década seguinte, Coutinho prosseguiu realizando sua obra de forma independente, predominantemente em vídeo, aprimorando em títulos como “Boca do Lixo” (1993) o dispositivo do “cinema de conversa” que se consolidou e o estabeleceu num novo patamar a partir de 1999 com “Santo Forte”. O ciclo que se seguiu (“Babilônia 2000”, “Edifício Master” e “Peões”, embora este um pouco à parte, e “O Fim e o Princípio”) desenvolve até 2005 o método a seu limite, posicionando-o à frente da onda de valorização inédita do cinema documentário brasileiro e, sem qualquer favor, estabelecendo-o como o mais importante cineasta brasileiro da virada do século XX para o XXI.

Confissão e ficção

Eduardo Coutinho ingressou no cinema pela ficção no começo dos anos 1960, companheiro de viagem do Cinema Novo. O projeto original de “Cabra Marcado para Morrer”, que teve as filmagens interrompidas pela eclosão do levante militar de 31 de março de 1964, era o de uma dramatização do assassinato do líder rural João Pedro Teixeira, com todas as marcas da produção engajada do CPC da UNE. Na década seguinte, equilibrando-se entre o cinema e empregos jornalísticos para pagar as contas, Coutinho prosseguiu na carreira em torno do universo ficcional, realizando seus três filmes (o episódio “O Pacto”, do longa “ABC do Amor”, de 1966, mais “O Homem que Comprou o Mundo”, de 1968, e “Faustão”, de 1970) e colaborando com roteiros sólidos (“Os Condenados”, de Zelito Viana, de 1973, “Lição de Amor”, de Eduardo Escorel, de 1975, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, de 1976).

Friso essa experiência para destacar que Coutinho foi também e sobretudo um imenso contador de histórias. Ao abraçar definitivamente o documentário em meados dos anos 1970, ao ingressar no grupo pioneiro da fase independente do “Globo Repórter”, ele lapidaria esse talento invulgar já dentro do contexto da produção não ficcional.

De seu primeiro documentário de média-metragem, “Seis Dias de Ouricuri” (1976), até o ainda inédito “Palavra”, a ser finalizado sob a batuta do produtor João Moreira Salles e da montadora Jordana Berg, Coutinho assumiu o papel de uma espécie de Sherazade da vida cotidiana brasileira. Suas mil e uma noites são os mil e um dias de seus personagens anônimos, que se sentavam diante de sua câmera para narrar anedotas de suas trajetórias comuns mais invulgares na especificidade de cada uma delas.

Ele eliminou a autoritária e tediosa “voz de deus” das narrações “em off”, abraçando a voz do homem (e da mulher)

A obra de Eduardo Coutinho fez-se assim um cinema do encontro e da escuta, dos gestos e da palavra. Coutinho abominava o filme de tese, o cinema generalizante e didático, como muito da tradição do documentário, aqui, ali e em qualquer lugar. Ele eliminou a autoritária e tediosa “voz de deus” das narrações “em off”, abraçando radicalmente a voz do homem (e da mulher). Para ele, como no verso de Leonard Cohen, a quem imagino que devesse visceralmente ignorar, “there is a blaze of light in every word” (há uma chama de luz em cada palavra).

“A improvisação, a casualidade, a relação amigável às vezes conflitiva entre os conversadores dispostos, em tese, nos dois lados da câmera – é esse o alimento essencial do documentário que tento fazer”, afirmava o próprio cineasta. Era esse o princípio básico, mas a inquietação pessoal e estética de Coutinho o empurrava a uma incessante busca por aplicá-lo a novas expressões formais.

Mesmo no núcleo mais homogêneo da fase do “cinema de conversa” (1999-2005), são notáveis as sutilezas que distinguem a primeira obra (“Santo Forte”) da última (“O Fim e o Princípio”). E, a partir de então, já estabelecido como o mais influente e reconhecido documentarista brasileiro, e um dos mais renomados autores da cena não ficcional planetária (apesar dos desafios impostos pelo enraizamento de sua obra na palavra falada no português brasileiro), Coutinho alça novo voo.

“Jogo de Cena” (2007) embaralha conversa confessional e discurso ficcional, levando a curto-circuito o dispositivo que consolidara. Nos dois filmes seguintes, abandona “o cinema de conversa” em favor de duas experiências fílmicas totalmente distintas.

Pedágio do tempo

Em “Moscou” (2009), os bastidores da montagem teatral pelo Grupo Galpão do “Tio Vânia”, de Tchekhov, possibilita a ele libertar o documentário brasileiro do monopólio do assunto e investigar o que é o cinema, como que o testando como instrumento de pesquisa para saber – como sempre em seus filmes – porque vivemos, porque sofremos. Já “Um Dia na Vida” (2010) é um autêntico documentário de arquivo que devassa o cardápio imbecilizante de 24 horas gravadas das TVs abertas nacionais.

Por fim, naquela que foi a última obra que nos apresentou em vida, “As Canções” (2011), Coutinho recupera o dispositivo consagrado do “cinema de conversa” para mais uma vez tensioná-lo, assim como o fizera em “Jogo de Cena” (2007). Chegara a hora da busca da transparência das condições de produção por trás daquele formato, como se ao documentário fosse introjetado seu próprio “making of”.

Coutinho nos lega ainda dois filmes a conhecer. No primeiro, examina o pedágio do tempo sobre os protagonistas sobreviventes de “Cabra Marcado para Morrer”. No segundo, coloca-se face a face com um recorte etário incomum em sua obra, conversando com estudantes secundaristas do Rio de Janeiro. Mais que título de filme, “Palavra” ecoa como o batismo de seu testamento.

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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários