Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O resto é silêncio

Escritor colombiano retraça trajetória de seu colega e conterrâneo mais ilustre, Gabriel García Márquez, morto aos 87, na quinta. Com o núcleo duro de sua obra escrito antes do Nobel (1982), o autor de “Cem Anos de Solidão” preferiu nos últimos anos o silêncio à repetição, e deve ser lembrado como imenso, mas não como um deus.

Se um homem morre quando seu coração para de bater, Gabriel García Márquez acaba de morrer; se um escritor morre quando deixa de escrever, García Márquez morreu no final de 2006, quando convidou para um almoço seu círculo de amigos mais íntimos para lhes dizer que não pensava escrever mais nenhuma palavra.

Se uma pessoa deixa de ser quando sua mente e sua consciência o abandonam, podemos dizer que a alma de García Márquez vinha escapando de seu corpo já há alguns anos, pouco a pouco, como se quisesse despedir-se da vida com dissimulação, sem que nos déssemos conta de que partia.

Mas se um escritor morre quando já não é lido, podemos dizer que Gabriel García Márquez seguirá vivo por muito tempo e morrerá somente quando não haja ninguém sobre a terra que saiba ler.

Na última vez que o vi, em janeiro de 2010, García Márquez começava a viver nos jardins desérticos da desmemória, mas ainda conservava lampejos fulgurantes dessa maravilhosa anomalia de sua inteligência, que o havia levado a dizer e escrever coisas que só à sua mente prodigiosa poderiam ocorrer.

Estávamos em sua casa de Cartagena, tomando a fresca da tarde em uma varanda. Mercedes, sua mulher, acabava de nos contar que sua intenção, 20 anos antes, era comprar uma casona antiga no centro histórico para reformar, mas que, no fim, desistiram “pelo medo de Gabo dos fantasmas”.

A palavra “fantasmas” pareceu despertar sua mente abstraída. Ele então fez um comentário que nos deu, uma vez mais, o escasso prazer da beleza verbal: “Quando chegamos aqui eu não recordava que essa casa era minha, mas então semeamos árvores e aqui ficamos”.

Todos nos olhamos com um sorriso que não era de incompreensão ou de compaixão, mas de estupor: a alma fugitiva do escritor não deixava de pronunciar frases lindas, ainda que divorciadas da ordem lógica do pensamento comum.

Essas duas características unidas fizeram de sua obra algo extraordinário: sua credulidade –a alma intacta do menino a acreditar por inteiro nas coisas fantásticas que inventam os grandes (histórias de aparições, de fantasmas, de mortos que falam, de ossos que se movem e de seres invisíveis que, sem tirar o chapéu, se sentam “a contemplar as cinzas da lareira apagada”)– e sua capacidade de transformar sua experiência cotidiana em algo fantástico, contando-a com manobras verbais que tornavam verossímil e quase normal o incrível e o mágico.

Sua maneira personalíssima de explicar o mundo por meio de imagens de grande perfeição poética sempre fez com que suas frases ficassem, como ele mesmo dizia “encalhadas no coração dos leitores”.

Por seus dotes de adivinho, em vários de seus romances assistimos à velhice de patriarcas que iam ficando mudos e melancólicos, esquecendo tudo, à sombra das árvores de um pátio, real ou imaginário.

Arco 

Se a vida literária de um escritor se mede pelo arco de tempo entre o primeiro e o último livro que publicou, García Márquez nos acompanhou por meio século. Poucas carreiras são mais ricas, maravilhosas e prolíficas do que esses 50 anos que separam “A Revoada (O Enterro do Diabo)”, publicado em 1955, e sua última novela, “Memória de Minhas Putas Tristes” ( 2004).

Foram esses dois livros, precisamente, os que receberam as críticas mais ácidas e impiedosas em sua vida de escritor. Imatura e malograda, se disse da primeira obra; senil e prescindível, da última.

Sabe-se que García Márquez esteve a ponto de abandonar a carreira de escritor após receber uma carta da editora Losada, de Buenos Aires, firmada pelo diretor da renomada casa, Guillermo de Torre, que não só lhe informava que não publicaria esse romance supostamente malogrado, “A Revoada”, como aconselhava o jovem escritor a buscar outro ofício. Jorge Luis Borges muitas vezes lhe falaria do mau gosto literário de seu cunhado, mas García Márquez, naquele momento, não podia ter em mente esse consolo, que só chegaria depois.

Já quanto a “Memória de Minhas Putas Tristes”, senão por uma crítica ponderada e elogiosa de J.M. Coetzee no “New York Review of Books” (que lê a confissão do sábio como uma espécie de conversão religiosa e vê a jovem virgem, Delgadina, como uma nova Dulcineia), a nota predominante foi a acusação de que García Márquez seria pedófilo, putanheiro, proxeneta das letras. Alinharam-se esses e outros insultos, e não críticas.

Candor 

Recentemente me propus o exercício de reler, juntos, esses dois romances, para escrever um ensaio. Tenho uma teoria sobre as primeiras obras dos grandes artistas: quando eles não sabem ainda quão importantes chegarão a ser, escrevem, de certa forma, como muito mais liberdade e com extremo descuido, com certo candor inocente que desnuda, sem querer, aspectos recônditos do autor.

Creio que a frequência excessiva com que muitos escritores renegam seus primeiros livros e sua obsessão por proibir que sejam reeditados não obedecem, na realidade, a razões de estilo ou aos fiascos literários de anos de aprendizagem, mas sim ao fato de que eles não querem ver expostas as chaves secretas de suas obras posteriores.

Embora em “A Revoada” se note um problema técnico –seus três monólogos não se justificam nem estão tão bem imbricados como nos outros livros de García Márquez–, o livro tem, salpicados aqui e ali, achados poéticos como os que mais tarde inundariam as melhores páginas de Gabo. São observações certeiras, comparações que desenham o que ocorrem e o mostram com a nitidez icástica de uma pintura.

Por exemplo, um “garotinho que passa assoviando, transformado e desconhecido, como se acabasse de cortar o cabelo”. Ou as mulheres que “se levantam, babadas, com a flor do travesseiro bordada na face”.

No que concerne às chaves para livros posteriores, basta dizer que, neste primeiro romance, García Márquez nos apresenta uma Macondo ainda muito apegada a seu modelo real, Aracataca, seu vilarejo natal, com uma companhia bananeira também mais realista, que é a culpada de levar ao povoado a revoada (um mundaréu de trabalhadores braçais vindos de fora, sem destino, que só pensam no lucro imediato e não se integram ao tecido social do lugar) e de fazer terra baldia do lugarejo com sua partida, deixando só o vento de desolação que sua ausência levanta.

Por outro lado, “Memória de Minhas Putas Tristes” tem, de fato, pequenos descuidos e inconsistências que o editor deveria ter resolvido. Não sei se foram distrações da idade, mas não caem nada mal em um narrador de 90 anos. Ao lado dessas pequenas falhas, porém, aparecem sempre, em cada página, os achados e maravilhas verbais do prosador consumado.

Se em “A Revoada” ainda havia titubeios (como inserir um “creio” quando diz algo exagerado, arranhando a cara de pau com que aprenderia a contar as coisas impossíveis), em “Memória” está sempre presente o narrador destemido.

Entre esses dois breves romances, está o que o mundo, com toda justiça, celebrou. Antes do Nobel (1982) há pelo menos três obras-primas: “Ninguém Escreve ao Coronel” (1961), “Cem Anos de Solidão” (1967) e “O Outono do Patriarca” (1975). Além dessas, uma novela impecável, “Crônica da Morte Anunciada” (1981), e dois livros de contos prodigiosos: “Os Funerais de Mamãe Grande” (1962) e “A Incrível e Triste História de Cândida Erêndida e Sua Avó Desalmada” (1972).

Depois do Nobel, creio, há só uma obra no nível das anteriores: “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985). Mas, diante esse núcleo duro (e deixo de lado seu extenso trabalho jornalístico, que merece um estudo à parte, por sua riqueza, seu frescor e sua complexidade), somente os “gabofóbicos” e gente de má vontade pode duvidar da importância central que tem García Márquez na narrativa universal na segunda metade do século 20.

Big bang 

Bastaria “Cem Anos de Solidão”, “big bang” do romance contemporâneo, que eclodiu em Buenos Aires em 1967, para torná-lo um clássico. Por mais absurdo que seja o esforço de fazer profecias, creio que haja poucas possibilidades de errar quando se diz que esse único livro –o épico necessário a qualquer civilização e que faltava na América Latina– seguirá sendo lido com deleite em anos por vir.

A fantasia e a violência, a vida familiar e as façanhas de guerra, a magia quase mística e o encantamento poético, tudo está reunido ali, nessas 350 páginas em que até as imperfeições são como particularidades, manchas de nascença.

Tive a sorte de estar, na Feira do Livro de Guadalajara de 2003, num jantar em que Gabo e Francisco Porrúa (editor de “Cem Anos de Solidão” na Sudamericana, tradutor de Ray Bradbury e “descobridor” de Cortázar) rememoravam os meses frenéticos em que, pela primeira vez, um livro da América do Sul se tornava um fenômeno mundial.

O que não contaram foi uma anedota engraçada que conta Bioy Casares em seu diário de Borges: “García Márquez passou períodos de pobreza nos quais dizia a seus filhos que não se afligissem, que um dia chegaria um senhor com uma mala cheia de dinheiro. Quando Cem Anos de Solidão’ vendeu tanto, a Sudamericana lhe advertiu que receberia uma soma considerável. García Márquez disse que muito bem, mas que não lhe mandasse um cheque, e sim que um senhor fosse levar o dinheiro em espécie, numa mala. Chegou o senhor, e García Márquez abriu a mala diante dos meninos”. O que na vida pública é épico, na vida privada se torna uma história de Aladim.

É possível que a sensibilidade atual suporte mal certas hipérboles do realismo mágico, assim como nos parecem piegas certas frases de romances românticos, ou eternas as sagas realistas, ou desmesuradas as façanhas dos livros de cavalaria. Mas cabe uma advertência: os exageros dessa escola não se devem tanto a García Márquez como a seus imitadores, que são legião, tanto no âmbito da literatura em espanhol como no de outras literaturas.

Lichtenberg dizia que o que havia de ruim nos livros muito bons é que costumam dar origem a muitos livros maus, medíocres. Muitos dos que denotam fastio com o realismo mágico –fastio que muitos compartilhamos– foram injustos com o maior expoente desse ramo. Não julgaram García Márquez depois de reler suas obras, grandiosas e convincentes por si, mas sim por esse requentado que foram e continuam sendo os livros de seus epígonos.

Política 

Não posso evitar o tema mais incômodo em que muitos se espraiam quando tecem diatribes contra García Márquez: a política e a triste intimidade do autor com os homens do poder.

Assim como Borges nunca será perdoado por ter recebido uma medalha do ditador Pinochet, García Márquez sempre terá pecado por receber uma casa do ditador Fidel Castro –ou pior, por se tornar, ao longo dos anos, seu amigo. Esse fascínio pelo poder foi, sem dúvida, uma fragilidade de seu caráter. É graças a esse deslumbramento e a essa proximidade que existe um romance grandioso como “O Outono do Patriarca”. Mas esse deslumbramento o levou a calar, submisso, diante de selvagerias inegáveis.

Mas há algo mais, que talvez seja o terreno em que pisam os “gabófobos” quando o atacam não pela política, mas pela literatura: para o bem e para o mal, nosso subcontinente mudou, e as nostalgias que governaram essa obra imensa não têm, para as novas gerações, a mesma ressonância mítica.

O mundo é outro, foram outras nossas infâncias, e algumas receitas, como se disse antes, se desgastaram. Assim como às vezes Borges parece imitar a si mesmo, também há páginas de García Márquez (sobretudo em “Notícia de um Sequestro”, de 1996, ou “Do Amor e Outros Demônios”, de 1994) que se pautam pela mesma técnica impecável, mas sem o sangue e a medula do início.

Ele mesmo o notou, e creio que seu silêncio recente, além do cansaço da idade, se deveu ao fato de que escrevia já com a inércia do ofício, e não com o vigor das entranhas.

García Márquez teve a duvidosa sorte de se converter num clássico em vida e de não ver mais seus livros proibidos (como 40 anos atrás em certos colégios colombianos), mas prescritos em doses semelhantes às reservadas às comédias de Shakespeare ou aos cantos de Dante. Assim é fácil chegar a ser mais venerado do que lido, e ainda mais fácil colher aplausos quando uns reúnem ímpeto para o insulto.

Quando alguém tem um instinto muito mais agudo que os cinco sentidos reunidos, e quanto esse instinto se une a uma intuição poética assombrosa e a um profundo conhecimento do coração, não é raro que o dono desses atributos seja considerado também um profeta.

A avó de García Márquez dizia que ele era adivinho. Entre adivinho e divino há poucas letras de distância. Não se deve dar esse passo: Gabriel García Márquez foi um escritor imenso, mas deste mundo. Pedir mais é impossível. Dizer mais é idolatria.

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Héctor Abad, 56, jornalista e escritor colombiano, é autor de A Ausência que Seremos e Livro de Receitas para Mulheres Tristes, ambos publicados no Brasil pela Companhia das Letras