Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A diplomacia secreta de García Márquez

Ele dizia que um homem tem três vidas: a pública, a vida privada e a secreta. Em sua vida secreta brilhou uma faceta que continua guardando um oceano de segredos: a de conspirador. Seu amigo, o general Omar Torrijos, presidente do Panamá, dizia que ele praticava a “diplomacia secreta”, e era verdade.

Sabia de sua fama e do poder gerado por essa fama. Não titubeava na hora de usá-las para defender as causas nas quais acreditava. Sabia que não precisava procurar os políticos: eles o procuravam. Seu envolvimento em negociações políticas delicadas é quase desconhecido. Agia nos bastidores, e suas andanças só foram reveladas quando ele quis.

Em 1982, por exemplo, no livro “O cheiro da goiaba”, trazendo suas conversas com o até então amigo Plinio Apuleyo Mendoza, foi revelada a trama, em 1979, para libertar dois funcionários de bancos britânicos, Ian Massie e Michael Chaterton, sequestrados pela guerrilha de El Salvador. A pedido de Torrijos, García Márquez foi intermediário junto à Frente Farabundo Marti. Os dois funcionários tinham sido sequestrados. As negociações sobre o resgate emperraram e foram suspensas, e a guerrilha anunciou que ia fuzilá-los.

A García Márquez foi dado um prazo mínimo pelos guerrilheiros. Ele, então, buscou apoio de outro negociador: enquanto atuaria junto à guerrilha, o outro falaria com os bancos. Para isso, convocou seu colega de ofício, Graham Greene. As negociações foram retomadas imediatamente. Quatro meses depois, o resgate foi pago e os funcionários, libertados.

Campanha internacional

Dois anos mais tarde, em maio de 1981, François Mitterrand chegou à presidência da França. Fazia tempo que García Márquez conspirava contra a ditadura militar salvadorenha, e achou que havia chegado a hora de avançar. Tinha boas relações com assessores do novo presidente francês, principalmente Régis Debray.

Foram semanas de agitação febril, em que a casona branca da Calle Fuego 144 virou um centro de conspiração. Eram poucos os visitantes, e cada um deles tinha uma função específica: reunir dados denunciando a barbárie da ditadura salvadorenha (que, entre outras façanhas macabras, tinha assassinado o arcebispo Oscar Romero em plena missa), refrear o aspecto puramente militar da Frente Farabundo Martí e incentivar a negociação política, por exemplo.

Sabia que ele e seus visitantes eram vigiadíssimos pelo serviço de inteligência mexicano, e que os dados muito possivelmente eram passados para os norte-americanos. Se divertia inventando nomes e missões. Os arquivos mexicanos mostram que essas manobras surtiam efeito: os relatórios são cômicos, porque nunca se sabia o que era e o que não era verdade.

O trabalho de García Márquez culminou numa visita de Mitterrand ao México, e com seu governo – e, por tabela, o mexicano – reconhecendo a Frente Farabundo Martí como força política. Ou seja, como interlocutor válido para as negociações que anos depois chegaram a um acordo de paz que pôs fim a décadas de guerra civil em El Salvador.

Quando Torrijos foi a Washington assinar, com Jimmy Carter, um novo acordo que devolvia o Canal do Panamá aos panamenhos, García Márquez integrou sua comitiva. Aportou escudado num passaporte diplomático panamenho. E apertou a mão de Carter.

Torrijos aproveitou para perguntar a Carter a razão de seu país recusar teimosamente a concessão de um visto para seu amigo. A resposta foi concisa: porque ele gostava de Fidel Castro e viajava muito a Cuba.

Balela: ele era isso e muito mais, e viajava por tudo que é canto. Anos mais tarde, acabou sendo portador de mensagens secretas de Fidel para Bill Clinton, que resultaram num acordo antiterrorismo.

Algum dia se saberá quantos prisioneiros conseguiram a liberdade graças ao trabalho de García Márquez junto a Fidel e à cúpula da Revolução Cubana. Um deles foi Norberto Fuentes, autor de uma biografia de Hemingway em Cuba, e que, uma vez instalado em Miami, não levou um minuto para desancar seu protetor. Outro preso foi Armando Valladares, tido como o poeta que ficara aleijado pelas torturas sofridas.

García Márquez conhecia bem sua história. Sabia dos ecos da campanha internacional pela sua libertação. Conseguiu, mas pôs com uma condição: que Valladares descesse andando do avião que o levou para Madri. O aleijado que nunca foi acabou nomeado por Ronald Reagan embaixador dos Estados Unidos na Comissão de Direitos Humanos da ONU. Passado um tempinho, ninguém mais ouviu falar dele. Dizia García Márquez que, preso, ele fazia mais dano a Cuba que solto. E tinha razão.

Vida oculta

Há toneladas de histórias assim. Há pirâmides de depoimentos de gente que ele ajudou graças a cartas enviadas a presidentes, juízes e políticos de todos os calibres.

Doou dinheiro pesado para grupos humanitários de pelo menos uma dúzia de países, tentou um acordo de paz entre governo e guerrilha da Colômbia, salvou a vida de militantes, viajou várias vezes buscando (e quase sempre conseguindo) apoio para os sandinistas da Nicarágua, a resistência da Guatemala, os chilenos do exílio, os uruguaios expatriados, os perseguidos da América Latina.

Em 1982, quando ganhou o Nobel de Literatura, disse que foi um engano: que devia ter ganho o Nobel da Paz. Muita razão tinha a Academia Sueca de Letras. Muita razão tinha ele.

Algum dia se saberá dessa sua vida oculta. Quem acompanhou algumas daquelas andanças, daquelas conspirações, sabe como ele foi eficaz. E mais, muito mais que isso, como soube sempre ser generoso e solidário em sua diplomacia secreta.

Algum dia se saberá.

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Eric Nepomuceno é autor de O massacre e Coisas do mundo, entre outros livros, e tradutor de algumas obras de García Márquez no Brasil