Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os mundos mágicos da escrita poética de García Márquez

Quando perguntaram a Gabriel Garcia Márquez o segredo que o transformou no último grande contador de histórias do século XX, ele disse que “apenas” tentava imitar o tom com que sua avó materna lhe contava episódios dos mais fantásticos sobre sua família e pessoas próximas ou da comunidade onde nasceu, na cidadezinha de Aracataca, Norte da Colômbia. O detalhe, ressaltou o Nobel de literatura de 1982: ela fazia isso sem alterar um só traço do rosto. E foi sob essa lembrança que buscou o preciosismo literário em seu livro mais ambicioso, “Cem Anos de Solidão”, de 1967. Poucas obras na literatura universal conseguem ser, ao mesmo tempo, tão encantadoras e perturbadoras e grudar de modo tão intenso na cabeça das pessoas.

Garcia Márquez escreveu um romance para não se esquecer jamais. Seu texto longo, denso, trata de um século na vida da família Buendía, na cidade fictícia de Macondo, da sua fundação até a sétima geração. Personagens peculiares se sucedem, nomes se repetem entre eles e todos têm seu momento de brilho, até serem ofuscados pelo sucessor e apagar lentamente, como uma estrela, ou mesmo uma vela de sete dias. Até morrer. Seu romance é isso: um impressionante retrato da existência, da brevidade da vida, do modo como se põe tudo a perder e a única certeza antes da morte é a companhia fria e cruel da solidão. Assim, estabeleceu uma infinidade de personagens trágicos, marcados pelo silêncio sutil do desespero que nos acompanha por toda a vida diante das incertezas do destino e a proximidade cada vez maior da morte.

O escritor dizia que se inspirara em “Pedro Páramo”, do mexicano Juan Rulfo – sobre um rapaz que vai em busca do pai e encontra uma cidade em que todos os moradores morreram e viraram fantasmas. Mas pode ter sido influenciado também por “Fogo Morto”, a obra-prima do brasileiro José Lins do Rego. Não importa. É um romance único, monumental. Se não bastasse, Garcia Márquez é um caso raro de autor que não ficou conhecido por um livro só. Construiu uma obra sólida, de grandes romances, que se refletiu nas vendas expressivas. Pelo menos seis títulos justificam sua reputação. Além de “Cem Anos de Solidão”, destacam-se: “Ninguém Escreve ao Coronel” (1961), “O Veneno da Madrugada” (1962), “O Outono do Patriarca” (1975), “Crônica de uma Morte Anunciada” (1981) e “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985). Somam-se a esses “Os Funerais da Mãe Grande” (1962) e “Do Amor e Outros Demônios” (1994). Sem esquecer “Relato de Um Náufrago” (1970), um dos mais impressionantes textos jornalísticos de todos os tempos, sobre um pescador que sobreviveu por dez dias sem comer e sem beber, à deriva no mar, em 1955.

Do mesmo modo que esse breve livro de superação e de celebração da vida, toda sua ficção surgiu de um olhar único, sensível e humanista, de observar tudo à sua volta, e da memória afetiva intensa. Principalmente, durante e depois da longa experiência como jornalista, iniciada antes dos 20 anos, que o aproximou, na cidade de Barranquilla – onde era repórter do jornal “El Heraldo” –, de um grupo de escritores, estímulo para a produção literária. Décadas depois, em 1996, escreveu: “Há uns 50 anos, não estavam na moda escolas de jornalismo. Aprendia-se nas redações, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação, no qual a moral era conservada em seu lugar”.

Ironia do destino

Entre 1954 e 1958, Garcia Márquez foi repórter e crítico de “El Espectador”, até se tornar correspondente internacional na Europa. Três anos depois, mudou-se para Nova York, como correspondente internacional, já casado com Mercedes Barcha, com quem teria os filhos Rodrigo e Gonzalo. As críticas que fez a exilados cubanos e a aproximação com Fidel Castro o colocaram na mira da CIA e o forçaram a se mudar para o México. Nessa época, dividia a paixão de escrever notícias com a ficção. Um ajudou o outro, como destacou: “A prática da profissão, ela própria, impunha a necessidade de se formar uma base cultural, e o ambiente de trabalho se encarregava de incentivar essa formação. A leitura era um vício profissional. Os autodidatas costumam ser ávidos e rápidos, e os daquele tempo o fomos de sobra, para seguir abrindo caminho na vida para a melhor profissão do mundo, como nós a chamávamos”. Lembrou que Alberto Lleras Camargo, que foi sempre jornalista e duas vezes presidente da Colômbia, não tinha sequer o curso secundário.

“O Veneno da Madrugada – A Má Hora”, traduzido por Joel Silveira, embora não tenha tanto destaque quando se faz referência à obra de Garcia Márquez, é um daqueles romances de primeira linha, seminal e síntese de toda a sua ficção de fantasia ou política. Em especial, pela atmosfera febril, narrativa sólida e consistente, e a certeza de que essa inesquecível história muitas vezes inspirou outros autores e, também, o cinema. Identificam-se no texto influências de dois autores que tanto admirava: Albert Camus e Ernest Hemingway, embora William Faulkner fosse seu preferido. Como observou o crítico e tradutor Eric Nepomuceno, o autor faz nesse romance sua primeira aproximação com o tema que seria fundamental em sua obra posterior: o mistério e a solidão do poder.

Garcia Márquez o faz ao focar a trama em um rude alcaide – mistura de prefeito e delegado de polícia –, de formação militar, que, diante da incompetência e da insensibilidade das autoridades de seu país, governa um vilarejo a partir de seus anseios e humores, sob a tórrida temperatura escaldante, que, sem dúvida, interfere diretamente em seu temperamento. Na verdade, os nove romances que Garcia Márquez publicou entre 1955 e 1966 seriam estudos, experimentos para chegar ao seu momento maior, “Cem Anos de Solidão”. O livro do alcaide cita Macondo de “Cem Anos?” já como uma cidade derrotada, esquecida no tempo e no espaço. O pano de fundo de todas essas narrativas é o conflito que, nos últimos 150 anos, tem dividido a Colômbia entre liberais e conservadores, em particular a Guerra dos Mil Dias (1899-1903).

Em 2002, Garcia Márquez publicou a autobiografia “Viver Para Contar”, logo depois de saber que sofria de câncer linfático. Considerado o livro mais esperado da década, tornou-se um caso raro de relato de memórias a virar best-seller mundial, com 2 milhões de exemplares vendidos no ano de lançamento. O ponto de partida é a viagem que Gabo – apelido de juventude – realizou, aos 22 anos, com a mãe até Aracataca, para acertar a venda da casa onde o escritor nasceu. Para ele, a experiência, carregada de nostalgia, transformou em definitivo sua obra. Tudo que escrevera até aquele momento estava fadado à obscuridade, pois era “pura invenção retórica sem base em verdade poética”. A volta à cidade natal o fizera repensar na maneira como compunha suas histórias e personagens. A proposta “inovadora” seria colocar no papel fatos e pessoas com quem conviveu no dia a dia. O estranho hábito da menina Rebeca de comer terra e cal que se vê em “Cem Anos de Solidão” foi inspirado no comportamento de uma de suas irmãs, Margot. Ele explica também que o namoro quase impossível de seus pais serviu de base para “O Amor nos Tempos do Cólera”.

O escritor sobreviveu ao câncer, mas, em 2012, Jaime Garcia Márquez afirmou que os médicos haviam identificado uma demência em seu irmão e que, embora estivesse bem fisicamente, perdera a memória e não voltaria a escrever. Vivia, então, no México. Três anos antes, um comunicado de parentes anunciou que o romancista se aposentava naquele momento e não pretendia escrever mais livros. Os fãs tinham esperança de um retorno, pois não sabiam que Garcia Márquez havia se desligado da realidade – ele que, durante boa parte da vida, se dedicara a criar livros que levavam as pessoas a mundos quase mágicos e, assim, ajudou a consagrar o gênero realismo mágico ou fantástico, hoje tão característico da ficção que se faz na América Latina. Por ironia do destino, deixou este mundo em vida, para refugiar-se nos muitos outros que inventou – talvez mais instigantes.

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Gonçalo Junior, para o Valor Econômico