Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

João Ubaldo e a catraca

Tinha um nome quase tão tonitruante como sua voz, e muito menos extenso que seu talento: João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro. Aliás, se lesse que tinha voz tonitruante seria capaz de rebater à moda antiga, alguma coisa do tipo “Tonitruante é a senhora sua avó”. As biografias dizem que ele teve muitos ofícios, o que pode parecer verdade. Formado em direito, nunca foi advogado. Na Universidade da Califórnia fez uma pós-graduação em ciências políticas e administração pública, e jamais foi funcionário público. Trabalhou até o fim como jornalista, mas antes deu aula na Universidade da Bahia, escreveu roteiros para cinema e séries de televisão. Foi um dos mais brilhantes e singulares escritores contemporâneos brasileiros e um dos mais estudados e respeitados mundo afora. Ganhou prêmios importantes e que, coisa rara num meio em que prima a vaidade, jamais foram contestados. Ao contrário: várias vezes, o prêmio foi criticado por ter demorado tanto a vir.

Mas não é por nada disso – prêmios, livros, glórias – que os amigos se lembrarão dele. É que João Ubaldo foi um ser humano muito especial, desses que, quando cometem a imprudência de partir para sempre, deixam um vazio que ninguém saberá preencher. Seu verdadeiro ofício foi viver a vida a cada segundo. Era dono de um humor proverbial, ria um riso que ninguém ria igual, era de uma generosidade sem fronteiras. Também era cético, angustiado e, às vezes, desesperado. Mas acabava se escudando sempre no humor, e assim pairava sobre as agruras da vida.

Seus livros estão aí, e pelo menos dois deles – Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro – são absolutamente definitivos. Quem primeiro me falou de João Ubaldo, lá por 1972, foi o cineasta Ruy Guerra. Dizia ter lido um livro excepcional, que era a história do sargento que conduz um prisioneiro de um lado para outro. E lembro até hoje do impacto que aquela escrita insólita fez desabar sobre meus 20 e poucos anos. Depois, vieram os outros, todos com aquela marca pessoal que só os grandes escritores sabem imprimir em sua arte.

João Ubaldo era capaz de dizer coisas profundas e surpreendentes sem perder o sorriso, como se não se levasse a sério ou então como se só mesmo sorrindo encontrasse forças para se deparar com os mistérios da vida. “Somos infinitamente menores, diante do universo, que um grão de areia da praia de Copacabana. Não somos nada, em relação às grandezas universais. E no entanto, essa centelha de carne pensante é capaz de gerar criações monumentais…” Acabo de ouvir de novo a voz de João Ubaldo, na conversa que gravamos para o programa “Sangue Latino”, dirigido por meu filho Felipe. “Carne pensante”: assim Ubaldo se referia ao cérebro humano, repetindo a definição dada por um psicólogo americano. Assim ele salpicava de humor uma constatação que poderia soar banal.

Prezava a amizade como um dos valores mais importantes da vida. “Se temos amigos”, dizia, “certamente não somos de todo maus. Amigo serve também para isso…”. Ubaldo e eu passávamos temporadas sem nenhum encontro, mas gostávamos um do outro e sabíamos disso e era como se esse afeto nos bastasse. Quando nos encontrávamos, eu voltava para casa trazendo uma bagagem renovada de histórias e ensinamentos – e carinho pelo meu amigo distante.

Riso aberto

Cada um de nós, que convivemos com ele, temos um repertório pessoal de lembranças. E, nelas, se alternam as imagens de um Ubaldo formidavelmente humorado e de um Ubaldo às vezes perplexo e angustiado com as mazelas do mundo. A única imagem que não se alterna é a de um Ubaldo afetuoso e solidário.

Eu me impressionava com sua presença de espírito e sua rapidez de pensamento. Lembro, por exemplo, das tardes no Arataca, um botequim que ficava dentro do mercado do Leblon. Éramos um grupo amplo que durante anos se reunia pontualmente a cada sábado. O Arataca era um templo da amizade. Certa vez Ubaldo e Tom Jobim começaram a recordar poemas de T.S. Eliot e Walt Whitman. Todos na mesa ficamos mudos diante daquela erudição exuberante num inglês perfeito. Até que Tom começou um poema dramaticamente curto de Eliot, do qual seu parceiro de desafio da memória não conseguiu se lembrar. O duelo terminou ali, e a vitória inconteste de Tom Jobim prevaleceu até que ele, num ataque de sinceridade, confessou que tinha improvisado o poema curto na hora. E então foi a vez de Ubaldo padecer do mesmo ataque: boa parte dos poemas de Whitman que o Tom fazia de conta recordar também tinha sido inventada no ato.

É de lembranças assim que levarei o Ubaldo comigo. E também levarei o que ele me disse no mesmo “Sangue Latino” sobre o destino e a morte. Lembrou de Tuinho, um amigo de Itaparica, seu reino único e universal, que quando conversava com ele sobre essas questões mais complexas e profundas, lembrava o óbvio: diante da morte, nada a fazer. O mais duro é que ninguém voltou para dizer como é a passagem. “O que assusta”, dizia o amigo de Ubaldo e ele repetia rindo, “é a catraca. Passar pela catraca é o problema”.

E João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro ria e ria, não da catraca, mas para enfrentá-la com seu melhor esconjuro: um riso sem igual.

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Eric Nepomuceno é escritor e tradutor, autor de Coisas do Mundo (Companhia das Letras), O Massacre (Planeta) e Antologia Pessoal (Record)