Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A morte do escritor arredio

No primeiro dia de janeiro, o escritor J. D. Salinger completou 91 anos sem grandes motivos para comemoração – afinal, em maio, ele fraturou o quadril, mas conseguiu uma recuperação satisfatória. Por pouco tempo: sua saúde se deteriorou nos últimos dias e ontem, em Nova York, o agente literário Phyllis Wesberg anunciou que um dos maiores escritores do pós-guerra morrera de causas naturais. ‘Salinger não sofreu nenhum tipo de dor’, ressaltou Wesberg, encerrando com uma frase emblemática: ‘Ele ressaltava que vivia nesse mundo, mas que não fazia parte dele.’

Não se trata de uma frase de efeito. Afinal, o autor de O Apanhador no Campo de Centeio (1951) – obra que introduziu uma voz completamente nova na escritura americana e rapidamente se tornou um livro cult, um ritual de passagem para os intelectuais e os desiludidos – esse escritor, enfim, vivia recluso há mais de 50 anos na cidadezinha de Cornish, North Hampshire. Nenhum vizinho se atrevia a revelar alguma novidade sobre sua rotina e fotos da intimidade continuam sendo verdadeiras raridades.

Ainda é um mistério o motivo que o levou ao total isolamento da fama. Depois de O Apanhador, livro que Mark Chapman confessou ser sua leitura quando assassinou John Lennon em 1980, Salinger publicou Nove Estórias (1953) e foi aclamado pela crítica, surpresa com a forma pela qual ele desmontara a estrutura do conto. Em pouco tempo, tornou-se o ídolo da contracultura, que via em Holden Caulfield, personagem de O Apanhador, sua figura máxima – ainda hoje, as primeiras frases do livro (veja no trecho) exalam um poder de sedução incomparável.

‘Adoro escrever, mas para meu prazer’

Em meio a um momento de completa aclamação, porém, Salinger decidiu se calar. Sem motivo aparente. Mesmo assim, seus escritos continuaram sendo publicados. Franny e Zooey, uma coletânea de dois contos longos sobre a família Glass, saiu em 1961. Outros dois, Pra Cima com a Viga, Moçada e Seymour: Uma Introdução, formaram um mesmo volume, lançado em 1963. A última obra impressa de Salinger foi Hapworth 16, 1924, um conto que ocupou quase toda a edição de 19 de junho de 1965 da revista The New Yorker e que só voltou a público em 1997, quando Salinger permitiu que uma pequena editora, Orchises Press, publicasse uma edição de capa dura. Cinco anos mais tarde, no entanto, anulou o acordo.

Nos anos 1970, Salinger decidiu não mais dar entrevistas. Fechou o cerco na década seguinte ao buscar respaldo na Justiça para evitar que o crítico inglês Ian Hamilton citasse suas cartas em uma biografia. Incentivou, portanto, a obsessão dos curiosos literários em descobrir não apenas o que fazia o velho Salinger, mas, principalmente, se escrevia algo ficcional. Qualquer pista, por menor que fosse, era valiosa.

Como a fornecida por Joyce Maynard, que foi viver com ele na década de 1970, quando estava com 18 anos – em um livro de memórias publicado em 1998, ela jurava ter visto prateleiras cheias de cadernos dedicados à família Glass e acreditava na existência de pelo menos dois novos romances trancados em um cofre. Nada, porém, foi confirmado.

‘Sinto uma paz maravilhosa com a decisão de não publicar meus escritos; é algo muito sereno’, disse ele em 1974, em uma repentina e inesperada entrevista que concedeu por telefone ao jornal The New York Times. ‘A edição de alguma obra representa uma terrível invasão em minha vida privada. Adoro escrever. Mas escrevo para mim, para meu próprio prazer.’

Um marco da cultura moderna

Inconformados com o silêncio, alguns admiradores decidiram continuar a obra de Salinger por conta própria. Um escritor sueco, Fredrik Colting, vulgo ‘J. D. Califórnia’, pretendia lançar nos Estados Unidos no ano passado o livro 60 Years Later: Coming Through the Rye, romance em que continuava a saga do lendário Holden Caulfield, agora um velho esquisito e solitário que foge de um asilo para ficar com sua amada irmã, Phoebe, uma viciada em drogas à beira da demência.

Por meio de seus advogados, Salinger conseguiu impedir a publicação e, se Colting pode se vangloriar de algum mérito, foi o de conseguir uma declaração do escritor: ‘Não há nada o que acrescentar a Holden. Leiam novamente o livro. Está tudo ali.’

Uma atitude coerente para quem escreveu os primeiros contos na Europa durante a 2ª Guerra Mundial (foi um dos soldados que desembarcaram na Normandia) e que considerava Ernest Hemingway e John Steinbeck escritores de segunda categoria – seu respeito limitava-se a Herman Melville.

Apesar de intocável como clássico, O Apanhador desperta hoje menos interesse entre os estudantes americanos – o número de venda dos exemplares continua satisfatório (o total, no mundo inteiro, segundo editores americanos, chega a 65 milhões de exemplares vendidos), mas a curva vem decrescendo ao longo dos anos. No Brasil, os direitos da obra de Salinger pertencem, desde 1965, à editora do Autor (fundada por Walter Acosta, Fernando Sabino e Rubem Braga).

Ainda que a reputação de Holden Caulfield como exemplo perfeito do rebelde sem causa esteja arranhada, sua história tornou-se marco da cultura moderna, influenciando decisivamente a canção pop, de Pearl Jam a Eddie Vedder.

Eles falam de Salinger

** ‘Ele foi um autor muito importante porque conseguiu chegar perto dos adolescentes. Ao fazer seu romance com muita espontaneidade, de forma muito automática, ele conseguiu aquele ritmo, o que deu a ele um sucesso incrível. Eu não tenho muito para falar sobre ele porque li seu romance há muitos anos e não era mais adolescente. Ou seja: não sofri aquele impacto.’ (Ruth Rocha, escritora)

** ‘Eu gosto da mitologia que ficou cravada a partir da narrativa do livro O Apanhador no Campo de Centeio, ligada à estranheza do adolescente, da juventude americana. Passei a vida inteira ouvindo falar do livro, o que criou esse fascínio pela mitologia, muito mais do que pelo conteúdo do livro.’ (Fausto Fawcett, músico e escritor)

** ‘O livro dele influenciou muita gente. É meio zen-budista, e isso marcou muito. O zen já aparecia no existencialismo e no movimento beat, mas ele deu uma forma tipicamente norte-americana a essa leitura e criou um certo mito em torno dele próprio. Esse livro andava de mão em mão nos anos 60.’ (Jorge Mautner, músico, filósofo e escritor)

** ‘Ao contrário da maioria, gosto do Salinger contista. Devo ser um dos pouquíssimos leitores, escritores ou não, que não curtem O Apanhador no Campo de Centeio, talvez por tê-lo lido tardiamente, quando já tinha 20 e pouco anos. E, no fundo, acho uma lástima que esse livro seja tão cultuado a ponto de praticamente impedir que as pessoas conheçam outras obras de Salinger, como o esplêndido Nove Estórias, que mostra que ele foi um dos grandes mestres da narrativa curta.’ (Marçal Aquino, escritor)

** ‘Eu li há tantos anos O Apanhador, nem lembro mais. Não tenho a menor ideia do que dizer. Prefiro não me manifestar.’ (Ferreira Gullar, poeta)

** ‘Todo mundo leu O Apanhador no Campo de Centeio, cuja primeira tradução, do Jório Dauster, é primorosa. Eu não gosto do título, que é uma tradução literal. Não me identifico muito com o livro, mas é claro que havia ali preocupações universais de adolescentes.’ (Pedro Correa do Lago, livreiro, colecionador, editor e autor)

** ‘Este Salinger, este é um contista. E ele sabe como escrever sobre os jovens. Mas este livro, no entanto, é muito longo. Torna-se um tanto monótono. E ele devia ter cortado muito sobre estes imbecis e tudo sobre aquela escola degradada. Eles me deprimem. Eles realmente me deprimem.’ (James Stern, The New York Times, 1951)

** ‘O romance inteiro é um monólogo interior, um meio para radiografar a alma do adolescente. A primeira possibilidade de interpretação é psicológica. Os acontecimentos, os ambientes, os personagens em torno de Holden Caulfield não têm existência real; ao contrário, são deliberadamente `desrealizados´.’ (Otto Maria Carpeaux, O Estado de S. Paulo, 1958)

** ‘Poucos escritores desde Joyce poderiam se arriscar a usar tamanha riqueza de palavras sobre eventos que são puramente interiores e ações puramente verbais. A convicção de Salinger de que nossas vidas interiores são muito importantes o qualifica de forma peculiar para entoar a voz de uma América onde, para a maioria de nós, parece que há pouco a ser feito e muito a ser sentido.’ (John Updike, The New York Times, 1961)

** ‘Salinger não surge apenas como um dos poucos romancistas do segundo pós-guerra a se preocuparem com as reações do homem ante certo sentimento superior que poderia ser traduzido como a necessidade de exaurir-se na procura racional de Deus, sem o qual o acidente humano não seria possível.’ (Ruben Teixeira Scavone, O Estado de S.Paulo, 1967)