Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A perda e a indignação

Um dia após as belas e justas homenagens dedicadas à íntegra e emblemática figura do jornalismo brasileiro, Vladimir Herzog, pela passagem do 30º aniversário de sua morte, eis que o ‘mau destino’, para lembrarmos Manuel Bandeira, quis que também outro jornalista se ausentasse da vida, muito antes do que deveria. Na quarta-feira (26/10), faleceu Roberto Moura. Sua morte, num certo sentido, parece, pelo menos, suscitar diálogo com a desventura de Herzog. Deixarei, porém, para linhas adiante o tema da associação.

Antes de quaisquer abordagens, cabe assinalar um pouco da trajetória de um profissional com décadas de presença na atividade jornalística, tanto escrita quanto televisiva. Com passagem pelo Pasquim, jornais diversos (ultimamente assinava artigos na Tribuna da Imprensa), revistas como Veja e IstoÉ, além de atuações permanentes em programas da TVE, Roberto Moura era referência no mundo do samba, do carnaval (durante 28 anos consecutivos foi membro do corpo de jurados do ‘Estandarte de Ouro’), afora incursões outras na condição de produtor musical e de shows.

Seu campo de devoção era o da música que, a despeito de sua especialização, abrigava gosto e sensibilidade ecléticos. Desse breve recorte biográfico, não pode ficar sem nota a publicação de livros, a exemplo dos dois mais recentes – Sobre cultura e mídia‘ (Irmãos Vitale, 2002) e No princípio, era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes (Rocco, 2004), fruto de tese defendida em 2003.

Igualmente, a Roberto Moura, não faltou determinação quando resolveu ingressar na vida acadêmica, tornando-se companheiro no curso de Comunicação da Facha (RJ). Para tanto, afora a graduação que trazia de tempos outros, foi, no auge da maturidade, em busca da qualificação máxima, obtendo os graus de mestre e doutor. Outros projetos estavam a caminho, não fosse a mão sinistra a arrancá-lo de seus elos mais profundos. Num átimo, do alto de suas envolventes atividades, foi projetado ao porão irreversível. É dessa brusca mudança de cenário que agora irei tratar.

A cultura da morte

Desde o instante primeiro que recebi o impacto da notícia, incontida indignação ao fato se uniu. Não elimino a possibilidade de a memória de Herzog, renovada pelas homenagens, e acentuada pela referência que diariamente dele tenho pela doação de seu nome ao DCE da Facha, haver propiciado a relação entre duas mortes nas quais duas vidas, inclusive irmanadas na profissão, eram desgarradas pela lógica perversa com a qual se orienta a condução de um país.

É inaceitável a morte planejada e executada pela horripilante face de um regime que teme o pensamento. Nesse modelo, destruíram Herzog, agravado ainda pela covardia em sequer os algozes assumirem o ato, o que torna seus responsáveis seres ainda mais repugnantes. Apesar de tudo, na ditadura, todos sabem que a ‘tanatocracia’ (o regime da morte) se instala. Em tal quadro, cada um procura as formas de sua própria sobrevivência.

A indignação é inevitável quando se constata que, em pleno regime democrático – pelo menos, o que, em seu nome, vigora no Brasil – haja um modelo, igualmente planejado e executado, para ignorar a vida dos cidadãos. Enfim, o que matou o jornalista Roberto Moura? Alguns obituários registraram expressões como ‘infecção viral’ e ‘infecção interna’, acrescida de ‘falência múltipla dos órgãos’. A verdade é ‘falência múltipla dos órgãos do Estado’, em âmbito municipal, estadual e federal.

A este quadro de indigência nacional, some-se a negligência profissional do atendimento (público e privado), precariedade operacional e absoluto descaso com o sentido da cidadania. Tim Lopes, outra perda lastimável, ainda conheceu a morte precedida de tortura, movido pelo ímpeto destemido em exercer a profissão contra os interesses da ‘bandidagem’. Herzog e Moura foram ceifados por forças institucionais que decidem sobre a vida e sobre a morte.

O que matou, em cinco dias, Roberto Moura não foi a picada de um mosquito ou de um carrapato, segundo versões mais recentes. Foi simplesmente uma concepção de governo (ou desgoverno), parceira de uma concepção de cultura deformada, capaz de unir desvio de recursos públicos que deveriam ser destinados, prioritariamente, às áreas de saúde, educação e segurança, a subproduto profissional que se multiplica, tanto na área médica quanto no sistema educacional.

Na edição de sexta-feira (28/10) Folha de S. Paulo‘ consta artigo assinado por Silvio Fernandes da Silva que, além de médico sanitarista e cirurgião pediátrico, é doutor em saúde pública pela USP, afora os cargos de secretário de Saúde de Londrina e presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Em destaque, o artigo registra: ‘É preciso ficar bem claro que o Brasil é um dos países do mundo que têm o menor gasto público em saúde per capita’.

Conhecido e reconhecido

Na contramão de avaliações dessa ordem, encontram-se noticiários auspiciosos acerca de prósperos índices econômicos, mesmo que cidadãos morram pelas esquinas, seja por bala, seja por mosquito, ou ainda por qualquer outra razão que tenha, em comum, a ausência do Estado cuja preocupação central consiste em aumentar superávit primário, acima do que os próprios credores esperariam. O preço das vidas precárias e das mortes calculadas está justificado pelo ‘acerto econômico’.

Outra constatação se abstrai daqueles que orientam os (des)caminhos da nação: na sociedade brasileira, a prioridade é voltada para gado e frango. Todo o empenho deve ser carreado para o combate da ‘febre aftosa’ e da importada ‘gripe do frango’. Afinal, como fica o agronegócio? E a balança comercial? Quem, portanto, não nasceu gado nem frango trate de se desviar do infortúnio e sem nenhum sintoma de pessimismo, a exemplo de recente discurso do presidente da República. Em meio à festa de seu aniversário, não contendo a habitual oratória desastrada e temperada especialmente por ato falho, a exemplo do que registrou na sexta-feira (28/10) O Globo, sentenciou:

‘(…) a gente tem que levantar, todo santo dia, e fazer uma reza profunda para que a gente deixe o otimismo [queria dizer ‘pessimismo’] no banheiro, dê descarga nele logo cedo, e saia para a rua pensando coisas boas, porque aí elas acontecem’.

Caro Roberto Moura, a você não foi dado o direito de aprender a lição do sábio, a começar pela grotesca associação entre ‘reza profunda’ e ‘banheiro’, sem esquecer obviamente a ‘descarga’. Sair à rua, ‘pensando coisas boas’, você até o fez. O único problema é que no ‘manual do otimista’ não consta encontro com mosquito ou carrapato, ignorados pelos agentes do otimismo. Como conseqüência, você sofreu a punição de haver encurtado, pelo menos em 30 anos, sua permanência entre nós. De qualquer modo, valeu a convivência, mesmo quando, aqui e ali, divergíamos sobre algumas questões e desculpe-me se de um certo ponto em diante deixei que a indignação movesse os passos desta escrita.

Caro amigo, obrigado pelos tantos encontros. Saiba que permanecerá conhecido e reconhecido. Talvez, a melhor forma de encerrar esta mensagem seja relembrando passagem de Machado de Assis:

‘Conquanto vejamos a morte em todas as coisas, ela permanece incompreensível para nós, sobretudo quando atinge o ser humano e especialmente a criatura que amamos, porque há, no olhar no homem, algo que não pertence à essência das coisas que perecem.’

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)