Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A podridão do sucesso

Ao morrer semana passada em Los Angeles, aos 89 anos, o jornalista e escritor Ernest Lehman não poderia ter tido obituários mais amplos e elogiosos ao conjunto de sua obra em Hollywood, roteirista que foi de filmes importantes para diretores de prestígio: North by Northwest, de Alfred Hitchcock, Quem tem medo de Virginia Woolf, de Mike Nichols, A noviça rebelde e West Side Story, de Robert Wise, Sabrina, de Billy Wilder, Hello Dolly, de Gene Kelly, entre outros.


Contudo, para os eternos admiradores de jóias cinematográficas, em glorioso preto-e-branco, de feitura bem menos ambiciosa, Lehman era também e principalmente o autor de um filme que, produzido em 1957, The Sweet Smell of Success, dirigido pelo então desconhecido inglês Alexander Mackendrick, logo virou cult, não só por sua narrativa dura e seca, virulenta de teor, visual opressivo, como sobretudo pelo delicado contexto político e cultural americano da época em que apareceu.


De fato, àquela altura de sua carreira, bem cotado em Hollywood, aonde chegara pelas mãos do célebre produtor John Houseman, impressionado com a qualidade dos inúmeros relatos curtos publicados em revistas de prestígio, Lehman não tinha o menor interesse em ver levada ao cinema uma noveleta que escrevera no fim dos anos 40, Tell me about it tomorrow, sobre suas próprias e amargas experiências como um jovem jornalista iniciante na Broadway.


Afinal, o personagem principal do livro, o temível, frio e inescrupuloso colunista de fofocas J.J.Hunsecker, fora claramente inspirado na figura de um dos jornalistas mais poderosos e controvertidos de então, Walter Winchell, colunista do tablóide Daily Mirror, da cadeia Hearst, lido todos os dias (e ouvido em seu programa semanal de rádio), entre os anos 30 e 40, por 50 milhões de embasbacados cidadãos americanos.


Arma letal


No auge de sua prepotência e megalomania, Winchell podia, e fazia isso com prazer, com duas ou três linhas às vezes enigmáticas, mas sempre com uma pitada de maldade, construir e destruir carreiras e reputações do show business, dos negócios, da política e da alta sociedade. Reinou impune, aqui e ali aparando com habilidade golpes perigosos, durante 40 anos, explorando, com um texto telegráfico, numa linguagem peculiar por ele mesmo inventada, um dos aspectos mais inquietantes da mentalidade americana – o culto às celebridades, naquele tempo exercido só pela imprensa escrita (um ótimo livro sobre o tema é Winchell – Gossip, Power and the Culture of Celebrity, do jornalista Neal Gabler, de 1995).


Ao revelar os segredos de alcova de gente fina, ele, um pobretão de origem, ex-bailarino de vaudeville, inseguro e ressentido, talvez por isso mesmo tão vaidoso e insensível, parecia dizer ao leitor que ninguém era melhor ou superior nesta vida, ao contrário, os ricos eram piores do que nós, pobres mortais. ‘Democracia’, dizia, ‘é um lugar em que todo mundo pode dar um pé na bunda de todo mundo, mas ninguém pode fazer isso com Winchell’.


Esse fascínio do povão pelo mundo do luxo e da ostentação ele entendeu à exaustão e, ao bajular e desmoralizar ricos e famosos, aperfeiçoou uma arma letal para perpetuar seu próprio poder de sobrevivência e, de quebra, vingar-se dos inimigos, os reais e os imaginários. Por tudo isso, sabedor de seus imensos e sinistros recursos como colunista respeitado, intitulava-se o cronista maior da Broadway, condição que nem mesmo seus detratores mais ferozes lhe negavam. E quando o coitado de um informante escorregava e passava ao colunista uma fofoca depois desmentida, ficava meses, anos até, na lista negra de Winchell. Além da humilhação, a perda do cliente e o pão de cada dia.


Cólon nervoso


Quando soube do interesse de alguns produtores em filmar sua noveleta, Lehman confessou ter ficado com medo: ‘Para que vou me meter em problemas agora que estou numa boa’?, ele se perguntava. Não esquecera a longa e angustiante gelada que levou logo depois que seu relato literário, descrevendo as venenosas relações entre os colunistas da Broadway e os chamados press agents, jornalistas servis, convertidos em relações públicas de terceira, rápidos em vergar a espinha para promover seus clientes nas colunas de fofocas, prioridade absoluta para Winchell, foi publicado na revista Cosmopolitan.


Na época ele era ainda um desses press agents, conhecia de perto Winchell, e os colegas obviamente não lhe perdoaram a falseta, pois, temerosos da reação do colunista em caso de que se solidarizassem, levantavam das mesas quando ele chegava ao restaurante Lindy’s, ponto de encontro na madrugada da boemia da Broadway. Na ocasião, Winchell, para surpresa geral, só disse que não perdia tempo com ‘os Ernest Lehman da vida. Vou atrás de gente mais importante’.


Assim, quando finalmente a produtora do ator Burt Lancaster, a Hetch-Hill-Lancaster, convenceu Lehman a escrever o roteiro e dirigir um filme baseado em seu próprio livro, ele topou, não sem alguma resistência e desconfiança. Não deu outra, pois no final os produtores puxaram-lhe o tapete, entregando a direção ao inglês Mackendrick, e Lehman, com dificuldades para escrever o roteiro e francamente temeroso da reação de Winchell ao se ver tão bem retratado na tela, começou a dobrar-se de cólicas no cólon e foi aconselhado por seu médico a um repouso absoluto nas praias do Taiti. O amigo e dramaturgo Clifford Odets terminou o roteiro.


Inventário de picaretagens


Desligado da produção do filme, Lehman nem por isso sentiu maior alivio, pois não podia prever o resultado da empreitada. Na verdade, ele nunca apreciou os produtores, Lancaster incluído, que considerou, logo na primeira reunião, ‘um bando de sujeitos vorazes e amorais’, no fundo bem compatíveis com os personagens da história narrada no livro..


‘Se algum produtor em Hollywood se encaixava no perfil malicioso do meu relato, só podia ser Lancaster e seus sócios’, diria Lehman. E Walter Winchell teria todos os motivos para sofrer um ataque de fúria e desatar uma campanha raivosa contra Lehman em Hollywood, onde também tinha amigos nada desprezíveis, entre eles, o chefão da Fox, Darryl F. Zanuck.


Fotografado num depressivo preto-e-branco pelo mestre James Wong Howe, fundo musical jazzístico de Chick Hamilton e um elenco primoroso, destaque para Lancaster, soberbo como o colunista mau-caráter, e Tony Curtis, magnífico como um viscoso press agent, Sidney Falco, capaz das maiores patifarias para projetar seus clientes e ao mesmo tempo ficar bem com Hunsecker, o filme é um inventário perturbador das picaretagens mais sórdidas da Broadway da época, anos 50, dominada pela coluna de Winchell, uma figura tão odiosa que nem mesmo o próprio patrão, o também poderoso William Randolph Hearst, podia controlar.


‘Era eu mesmo’


Lehman esperou seis meses pela tão temida reação de Walter Winchell ao filme, que, definitivamente, apressou o declínio do colunista, na verdade iniciado um pouco antes, com o apoio entusiástico que dera ao senador Joseph McCarthy e suas infames campanhas persecutórias contra a esquerda americana – o chamado macartismo. Winchell escreveu em sua coluna que o filme perderia entre 500 mil e um milhão de dólares nas bilheterias, pois ‘nem Lancaster nem Curtis têm força suficiente para carregá-lo e levá-lo ao sucesso.’


O filme realmente não fez sucesso e muito menos faturou milhões de dólares, mas com o tempo converteu-se num clássico do gênero, uma das mais sombrias visões da fauna noturna de Nova York, território mítico do jornalismo e do show business que ali se faziam na década dos 40 e 50.


Ao lado de um par de jovens atrizes que não foram adiante, a loireta Barbara Nichols, aqui uma balbuciante e patética ‘cigarrete girl’ e namorada de Falco, e a morena Susan Harrison, a doce irmã de Hunsecker, Tony Curtis, então com 30, 10 de Hollywood, galãzinho recém-saído dos inócuos capa-e-espada coloridos da Universal, revelava-se o bom ator dramático que outros filmes logo viriam a confirmar. Na pele de Sidney Falco, ele acaba sendo pior do que J.J. Hunsecker, um puxa-saco repugnante, capaz até mesmo de emprestar a namorada para fechar um negocinho.


Anos mais tarde, Curtis diria em sua autobiografia que no fundo não teve maiores dificuldades para compor um personagem tão calhorda: ‘Moleza. Era eu mesmo’.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México