Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bye bye, Mr. Gonzo

Hunter S. Thompson partiu para sua reportagem mais radical. Deu-se um tiro no dia 20, em sua casa em Aspen, no Colorado. O tipo de jornalismo que criou catapultou a experiência narrativa da reportagem às estrelas. Deixou comendo pó na estrada a turma do new journalism, gente que por si só já radicalizava com obras-primas como Os eleitos, A sangue Frio, Os exércitos da noite, A mulher do próximo. Se o novo jornalismo rompeu fronteiras, o gonzo journalism deu um passo além.

Thompson escreveu cerca de 10 livros, quase sempre em primeira pessoa – suprema heresia para o jornalismo duro e atávico padrão Washington Post, lead, pirâmide invertida, mista, tudo em seu d-e-v-i-d-o lugar e Companhia Ltda.

Da lavra rebelde de Gonzo Thomspon aportou por aqui Hell´s Angels e A grande caçada aos tubarões, graças à Conrad do Brasil. Para ele, a reportagem era um exercício de bung-jumping. Mergulhava de cabeça, até o fim do precipício. Retornava com o tesouro do fundo do mar nas mãos, para deleite dos seus milhões de leitores e fãs.

Em Hell´s Angels, sua obra mais conhecida no Brasil, o senhor Gonzo acompanhou durante meses os temidos motociclistas da Califórnia, nos anos 60. Deles tornou-se amigo. No fim, como os angels não poupavam ninguém, também não pouparam Hunter Gonzo, que acabou com dentes e costelas quebrados.

Jack Kerouack, ícone da geração beat, jactava-se de ter escrito On the road de um só fôlego, martelando furiosamente rolos de papel higiênico, para não perder o ‘fluxo de consciência’, coisa em que os surrealistas franceses tanto acreditavam, tomados por uma boa dose de fundamentalismo freudiano.

Ficção e jornalismo

Gonzo Thompson, não! O negócio se movia na base de drogas e álcool. Piração pura, mas que, no caso dele, parecia dar certo. Recomenda-se que a experiência não seja seguida por incautos, neófitos, puristas e naïves das baias, das redações, dos aquários, do vapt-vupt online e xiitas da TV. Porque Gonzo só havia um.

Fui ao site de Hunter Thompson. Aqui, ó: (www.gonzo.org). Por lá havia uma discreta nota anunciando a sua morte. Noutro canto, um espaço para mensagens de condolências. Fucei algumas.

Um engraçadinho de nick Gatherer S. Thompson (nenhum parentesco com o defunto, pode crer) tascou que sabia por que Hunter cometera o tresloucado gesto. A mulher dele simplesmente se cansara de ajudá-lo, a ele, um velho de 67 anos. E então saiu para dar uma volta. Hunter teria ameaçado: se ela não voltasse, ele bum!

Outro se derramou em bits melodramáticos: ‘Todos os meus sonhos de um dia poder conhecer esse grande homem se partiram no momento em que minha mãe me ligou para o trabalho para avisar da tragédia’. Assinado: Chris. ‘É verdade que ele deixou um bilhete?’, pergunta um atônito EF. Não, Mr. Gonzo não deixou pista alguma sobre por que resolveu antecipar sua partida.

Mas, dentre as mensagens, há uma de um camarada jornalista, ex-amigo de Hunter Thompson. ‘Fui seu amigo durante anos. Aqui está um pouco da minha lembrança’, escreveu Lee Bloggins. E, dadivoso, abre um link para o mundo de Gonzo Hunter.

‘Quando as pessoas me perguntam sobre Hunter Thompson, eu respondo que ele era exatamente como aparece em seus livros. Então elas simplesmente sorriem, balançam a cabeça em sinal de reprovação e vão embora. Sou alérgico a conversinhas. E apesar de ter passado anos na National Enquirer, detesto dividir fofocas sobre celebridades. Além do mais, dizem que não é correto falar mal dos mortos’.

Mas, of course, Lee não resiste à tentação.

‘Apesar disso, quase fui demitido por causa do f.d.p do Thompson, porque ele não conseguia manter a boca fechada sobre nossas atividades noturnas. Ele quebrou a promessa solene de não levar meu santo nome para seus trabalhos de ficção. É isso mesmo, ficção que ele vendia como se fosse jornalismo.’

Egomaníaco sociopata

Ôpa! Grave afirmação. O que Gonzo Thompson fazia era ficção e não jornalismo? Bem, ele não está mais aqui para dar o troco. Se o clube fechado do novo jornalismo não escapou do escracho e da reprovação dos jornalistas de antanho, não seria diferente com Mr. Gonzo.

Lee revela que conheceu Thompson Gonzo em Palm Beach, em 1983. A imprensa sensacionalista cobria o divórcio turbulento do casal Peter e Roxane Pulitzer. Lee trabalhava para a National Enquirer e Gonzo para a Rolling Stone. ‘Não nos dávamos muito bem com a imprensa oficial, então era natural que formássemos nosso próprio pool’, diz Lee.

Algumas semanas depois, ele recebeu uma ligação de Thompson no meio da noite. Thompson disse que era uma emergência. ‘Ele sempre estava tendo emergências, então eu lhe disse para ligar para o 911’, escreve Lee. Aí ele falou que estava tendo problemas com a matéria sobre o caso Pulizter e precisava da ajuda do colega. ‘Aquilo me alertou. O discreto, recluso, egomaníaco sociopata precisa da minha ajuda? Isso era totalmente fora dos padrões. Hunter era um operador solo, um lobo solitário. Jamais pediria ajuda’.

A quem o legado?

Lee atendeu ao chamado de Hunter? Sim, eis o que ele encontrou pela frente. ‘Fui até o seu bangalô alugado em West Palm. As portas estavam fechadas, tanto as frontais quanto as laterais. Liguei as luzes e não havia ninguém em casa. A sala de estar estava cheia de garrafas, cinzeiros abarrotados e comida estragada. Lembra daqueles quartos vagabundos do hotel onde Nicholas Cage bebeu até morrer em Despedida de Las Vegas? Era bem assim’.

Para quem disse lá em cima que tinha por princípio não falar dos mortos, Lee golpeia abaixo da cintura e queima o filme de Hunter Thompson. Mas no fim das lembranças que escreveu sobre o amigo, se redime: ‘Ele rompeu a fachada do jornalismo objetivo ao mostrar que o repórter é parte da matéria, e que o observador sempre interfere naquilo que está observando.Thompson nos dizia sempre que não existe esse negócio de ‘imparcialidade e equilíbrio’’

E arremata laudatório, deixando no ar uma indagação: ‘Uma era chegou ao fim. Um grande americano se foi. Tombou um guerreiro. Qual de vocês carregará o seu legado?’ Uma pergunta que soprará ao vento, em meio ao conformismo reinante do jornalismo, sobretudo o norte-americano, o mesmo que por ironia Hunter Thompson ajudou a transformar.

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Formando em Jornalismo pela Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)